Chegar no Maracanã foi moleza. Agora meu objetivo era o Morro da Mangueira. Inspirado pela figura de Cartola & Carlos Cachaça e motivado por um documentário de Ivo Dornelles, não pensava em outra coisa nos últimos dias: visitar um dos berços do samba no país, um lugar responsável pela identidade brasileira, um lugar adorado por todos que o visitam, inclusive Bill Clinton, no ano passado. E queria também um pouco de emoção nesta minha vida tão sacal, ultimamente. A minha última grande emoção tinha sido um jogo do Inter vários meses atrás em que ganhamos de virada. Na parada de táxi do maracana:
“boa tarde, carioca, poderia me dar a simples informação de como chego no Morro da Mangueira”.
Risos.
“Voce quer subir o morro, nao é?”
“Sim, como faço”.
“Entre no carro”.
“Não, não, valeu. Tô afim de ir de ônibus mesmo, é óbvio, se tu me
permitires”.
“Ah, então ce pega o 722 meHmo, passa bem ali ó”.
“Obrigado”
Decidi não perder o meu tempo explicando que eu não estava interessado em drogas. Lá vinha o 722. Coração disparando forte. Da mesma maneira do que o ônibus que ia para Rocinha, brancos e pretos lotavam o veículo meio-a-meio. Nao sei bem porque esta observacao, mas por algum motivo achei digna de nota. Ou talvez porque seja meio racista no fundo, não sei, ninguém sabe de si. Um dia inventarão um exame de sangue para detectar racismo. Aí sim, vai triplicar o número de faculdades de Direito. Só a ULBRA vai abrir umas 15. Mas não vamos dispersar. Perguntei então para aquela ilustre ordinária (no bom sentido) passageira
“Com licença, qual é o seu nome senhora?”
“Meu nome é Dejair”
“Boa tarde, senhora Dejair. O negócio é o seguinte: estou muito a fim de conhecer o morro de vocês aí. Em parte pelo samba, em parte pelo Cartola. Bem acho que dá no mesmo. O problema é que não conheço muita gente aí estou com medo de ser assaltado, a sra sabe. Tenho a pele muito branca,. a sra sabe”
“E o que é que eu tenh a ver com isso, garoto”
Começou a rir, só estava me “cozinhando”.
“Aqui mora a D.Neuma, ao lado a D.Zica patati patatá…”
Mulher de Cartola, pensei. Nossa, tinha que visitá-la, mas não agora.
“E este é o Osvaldo, um dos organizadores da escola”
“Bom dia, muito prazer Osvaldo. Poderia caminhar um pouco com você?”
“Claro, gaúcho”
Me mostrou a favela, as construções, as crianças e alguma histórias. Confirmou algo que eu já tinha lido: Carlos Cachaça não estava presente no dia da fundação da escola. Tinha conhecido uma moçoila lá da Candelária, bem ao lado. Já Chico Porrão estava lá, juntamente com Angenor Ferreira, mais conhecido como Cartola e mais alguns outros sambistas. Estive no casebre famoso. Depois fomos para escola. Bill Clinton estivera lá há um ano atrás, com Pelé. Lá estava a famosa quadra de samba, com seus camarotes imponentes. O mais centrão era de Jamelão, intérprete histórico ejá sem muito fôlego. Visitei a diretoria e falei com o grande presidente. OK, agora queria visitar D.Zica. Na verdade só consegui falar com a Dona Zica após três subidas no morro. Ela nunca podia me receber. Mas fui insistente. Nosso primeiro encontro foi muito breve. Estava saindo para o médico por dores lombares. Me tratou com distinção. Na segunda vez estava dando uma longa entrevista para um documentário. No terceiro dia aí sim, conversamos bem, sobre Cartola principalmente. Fiquei encantado com aquela velhinha de 87 anos. Me deu seu livro, seu telefone, e não me convidou para feijoada que estava fazendo. Seria demais, mas tudo bem, a receita estava no livro que estava levando. Tirei algumas fotos, dei-lhe uns beijos e fui embora, louco para revelar as fotos e escrever alguma coisa sobre o acontecido: entrar na casa de Cartola e quase ver seu baú de pertences pessoais, que incluia sua famosa violinha. Isto, D. Zica não quis me mostar. Quem sabe da próxima vez.
“Bem, acho que vou indo, D. Zica, sabe como é, né? Não posso esperar pelo anoitecer aqui por essas bandas”
“Que é isso, garoto? Vai ficar aí mais um pouquinho e vai comer minha feijoada."
Já tinha ouvido falar que D. Zica era ex-cozinheira do Copacabana Palace. Não hesitei.
“Claro. Zica. Por que não?
A experiência de ter comido a feijoada da Dona Zica foi a maior da minha vida e após finalizado o banquete, ainda na na mesa (bastante estufado) perguntei:
“Puxa Dona Zica, como é que se faz esta feijoada? Queria tanto fazer para os meus amigos em Porto Alegre!”
Feijoada da Dona Zica (é a “estranheza” do conto. É o que temos…)
“Bem gaúcho, o primeiro ingrediente é o amor, pois sem amor não existe um
bom tempero, e nem uma boa cozinha”
“Naturalmente, Zica”
“Então vamos para os condimentos, que são bem conhecidos: alho, cebola,
folhinha de louro e uma pitadinha de pimenta do reino. Não esquecer do óleo
e sal. E mais: carne seca, costelinha defumada, paio, pezinho e orelha de porco, calabresa e toucinho defumado.
Modo de fazer para 10 pessoas: 1 Kg de feijão e 11/2 Kg da carne seca ao toucinho, ou seja, mais ou menos 250 gr de cada ingrediente defumado. Coloque o feijão para cozinhar e, à parte, as carnes. Depois de estarem cozidas, escorra a gordura e misture-as no feijão. Para acompanhar, arroz branco, couve, farinha de mandioca e laranja. Por fim, sugiro um bom aperitivo, aquela caipirinha. Assim se delicia essas duas maravilhas tipicamente brasileiras…”
“Ah, mas eu prefiro mesmo e uma cervejinha gelada, Dona Zica. Pode ser? Ah tá, porque se não puder eu não tomo. A senhora é quem sabe”
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