Surpresa. Há momentos em que o mero som dessa palavra provoca calafrios. Não passa de um eufemismo safado pra imprevisto e geralmente acontecimento inesperado é também inoportuno. Se pudéssemos prever, ao abrir os olhos de manhã, qual o estado de espírito dos astros e entidades que regem o cosmos, com certeza nem sairíamos da cama nesses dias em que tudo parece regido por um senso de humor diabólico. Acontece de tudo um pouco e sempre dá pra piorar. Acordei hoje e topei com o dedinho do pé na quina da cama. Toda vez que isso acontece me pergunto enquanto pulo num pé só pelo quarto pra que serve afinal o raio do dedinho do pé. E sempre chego à mesma conclusão: não serve pra mais nada além de bater nalgum canto pontudo e matar o infeliz de dor. Eu podia viver tranqüilamente com apenas oito dedos nos pés, porcaria! Mas talvez aí eu batesse o outro dedo, então transformado em último dedinho…droga, de todo o jeito eu saio perdendo! Depois de bater o recorde em imitar saci e desfiar um rosário inteiro de palavrões cabeludos, misteriosamente o dedo começou a doer menos. Santo remédio. Respirei fundo e me propus a começar de novo. Abri a janela e…chovia. Lá fora estava escuro às nove da manhã e o céu ostentava um tom plúmbeo capaz de desanimar a própria poliana. Ainda assim, resolvi que o dia ainda não estava perdido. Tomei um banho quente, saquei o guarda-chuva e saí à rua. Nem dez passos depois e um carro à toda velocidade passou, espalhando a enxurrada e me deixando encharcada. Talvez tenha sido um modo dele dizer que não tomei banho direito, vai ver esqueci de lavar atrás das orelhas. Maldito, tomara que aquaplane diante do próximo poste! Voltei pra casa e tornei a sair de roupa seca, já menos animada. Eu devia ter entendido o recado óbvio do universo e voltado pra cama, mas segui em frente agora era questão de honra! Péssima idéia. Durante o correr do dia fiquei presa no elevador, minha unha quebrou, engasguei com café, o computador travou e a alça da mala arrebentou bem quando eu ia fechar. É, ainda tinha isso: eu ia pegar um avião. O vôo, marcado pra sair às 19:50 do Rio, atrasou para às 20:30. Até aí normal, quem quer que já tenha viajado de avião ou que conheça a Gol ao menos de nome, sabe que nunca sai na hora mesmo. Sem me incomodar, enfiei o nariz num livro policial e o tempo passou sem que eu visse. Como o tempo estava medonho, pegamos turbulência entre Rio e São Paulo o que já era de se esperar. Os passageiros se agarraram nas poltronas, teve gente rezando e as aeromoças tentavam andar pelo avião sem cair em cima de ninguém. Uma cena grotesca, absolutamente hilária, razão pela qual comecei a rir baixinho, cá com os meus botões – e, não sei por que, teve gente me olhando feio. Ora, era engraçado mesmo! Medo de morrer? Que nada, se fosse a hora, não ia ter reza que segurasse o avião no ar! E não dava pra acreditar que eu era tão azarada assim: tanto avião pra cair e ia ser justamente o meu? Ah não! Não ia cair e pronto. Dito e feito, desembarquei em Congonhas sã e salva pra fazer a conexão pra Beagá e o aeroporto estava intoleravelmente cheio. Aí sim eu entrei em pânico, tenho horror a ajuntamento de gente. Arre! Procurei um lugarzinho e me sentei, procurando me resignar. Dessa vez estava previsto pra sair às 22:10 o avião. Às 22:30 anunciaram aos prezados passageiros do meu vôo que não tinha sido possível o avião chegar até àquele aeroporto por causa do intenso tráfego aéreo e que íamos ser transferidos pra Guarulhos, com previsão de finalmente embarcar por volta da uma da madrugada. Já teve a sensação de que um monte de gente caía fulminada à sua volta? Pois foi o que aconteceu. Por todo o saguão ecoou uma exclamação indignada em uníssono dos pobres passageiros, totalmente desanimados. Corri em busca de um telefone e os três primeiros que tentei estavam com defeito, não completavam a ligação nem à custa de pancada. Nessa hora eu perdi um pouco a minha fleuma, confesso. Que porcaria, oras, tem que acontecer tudo no mesmo dia? Entramos no ônibus pra Guarulhos e de cara o motorista foi apagando a luz, me forçando a guardar o livro responsável pela minha sanidade até ali. Saco. Não dava pra ver nada da janela e descobri que dormir era impossível, porque sentados nas poltronas da frente estavam o Tonto e o Mais Tonto. Eram dois sujeitos de terno e gravata, com uns trinta e poucos anos, absolutamente estúpidos. Percebia-se que eram advogados, mas de que espécie eu nem imagino. Sei que não os contrataria em hipótese nenhuma, pois não há como me convencer que um profissional que diz pobrema mereça algum crédito, a menos que seja peão de rodeio. Além de literalmente estropiarem a língua portuguesa, falavam com um sotaque carregado e horroroso, que tinha que melhorar muito pra ser considerado mineiro. Sotaque é uma coisa complicada, eu detesto quase todos à exceção do baiano. O carioca começando a frase com porra e exagerando nos esses pronunciados com som de xis, o paulistano com a fala cantada entremeada de meus à torto e à direito, o mineiro com o diabo do uai e da terminação única pra tudo: im. Argh! A discussão da dupla era interminável e totalmente desprovida de argumentos. Repetiam incessantemente as mesmas coisas, num tom cada vez mais histérico e gargalhavam cada vez mais alto. O ônibus inteiro estava à beira da loucura quando chegamos ao destino, e eu só conseguia pensar que se entrasse no avião e estivesse há menos de dez poltronas de distância daqueles idiotas eu surtaria de vez, sairia gritando e ai da aeromoça que tentasse me segurar! Sentada na sala de embarque, eu esperava que chamassem finalmente o vôo, desesperada pra chegar em casa. Embarcaríamos à meia noite. Quando finalmente anunciaram o embarque, eu quase chorei. Explico: o destino final era Beagá, com escala em Uberlândia onde eu ficava mas o aeroporto desta estava fechado por causa do mau tempo e era possível que não pudéssemos descer e tivéssemos que seguir direto e pegar outro avião pela manhã pra voltar. Já com os nervos em pandarecos, investimos sobre o balcão da Gol e crivamos o atendente de perguntas, às quais ele respondeu com grosseria e pouco caso. Faltou dizer foda-se, não é meu problema. Sem alternativas, embarcamos assim mesmo e, dessa vez eu me juntei aos que rezavam para que o aeroporto abrisse. Felizmente, não estava sentada perto da dupla verborrágica, mas em compensação, tinha uma menininha maldita vestida de rosa no banco de trás que não parava de chutar a minha poltrona. Quase fiquei com escoliose de tanto tranco nas costas. Olhei algumas vezes pra trás, implorando pra mãe fazer alguma coisa, mas foi em vão. Sabe aquele tipo de mãe que faz cara de paisagem enquanto o filho inferniza a vida de alguém? Essa mesma. E quando resolveu tomar atitude foi ainda pior: ô, minha filha, não faz isso! de um jeito mole, com cara de quem tava achando graça da pestinha. Fervendo de raiva, aproveitei um momento em que a omissa estava às voltas com o serviço de bordo, coloquei o rosto entre o espaço das poltronas e fiz uma careta medonha pra garotinha. Ela arregalou os olhinhos e não deu mais sinal de vida até o fim da viagem. Rá-rá. Ao menos uma vitória! Sobrevoamos Uberlândia por alguns minutos e conseguimos autorização pra pousar, graças aos céus. Cambaleei escadinha abaixo e, por um momento, temi que a bagagem tivesse extraviado, seguindo o padrão do resto da viagem. Felizmente as malas estavam lá e meu pai também, esperando. Cheguei em casa morta. Caí na cama prometendo a mim mesma que ia começar a ler horóscopo.
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