A internet deste início de século XXI vive uma situação digna de filme de ficção-científica, daqueles com cartazes sensacionalistas tão populares nos anos cinqüenta. Mundos em colisão! Haverá escapatória? Quem sobreviverá à catástrofe?
No Planeta Alpha, a população desfruta de um ambiente de comunicação aberta e colaborativa. Um bom exemplo de como as coisas funcionam por lá está no seu jornalismo. Em todos os cantos do globo, hordas de cidadãos fazem suas próprias reportagens e as disponibilizam para todos, com textos, fotos, áudio e vídeo, numa cobertura total de tudo que acontece. Melhor que isso, cada uma dessas micro-publicações interage com várias outras, trocando referências e comentários, apontando conexões e complementando com detalhes curiosos qualquer assunto levantado. A informação jornalística circula com velocidade surpreendente, e é sempre verificada por incontáveis colaboradores. As opiniões também se espalham com igual rapidez, tornando possível observar um acontecimento sob os mais diversos ângulos. E, para quem ainda não estiver satisfeito com o que encontrou, resta sempre a opção de publicar sua própria versão, já que todos os leitores, ouvintes e espectadores do planeta são, ao menos potencialmente, também produtores, redatores e editores.
Outro bom exemplo da comunicação aberta e colaborativa do Planeta Alpha é a forma com que são distribuídos produtos culturais como livros, discos e filmes. Dicionários e enciclopédias, jornais e revistas, rádios e televisões, todos oferecem seu conteúdo gratuitamente a quem se interessar. Quer um livro de poemas antigos ou o mais recente lançamento do seu escritor preferido? É só pedir uma cópia em alguma das várias bibliotecas do planeta. Quer ouvir sucessos musicais dos tempos da sua avó ou aquele single lançado com estardalhaço no fim de semana passado? Basta um clique na tela e estará tocando no seu computador ou pronto para ser transferido para o seu mp3 player. Um clássico do cinema expressionista ou o último episódio da sua série de tv favorita? Também disponíveis para download, tudo igualmente gratuito.
Assim é o Planeta Alpha, que está em rota de colisão com o Planeta Ômega.
No Planeta Ômega, as corporações têm controle quase absoluto sobre a informação que circula entre os habitantes, toda ela levando uma etiqueta com o preço de compra e as rígidas instruções de uso. Quer ler um livro, novo ou velho? Pague para a empresa que detém os direitos sobre a obra. Quer ouvir uma canção? Pague para a empresa que detém os direitos sobre a obra. Quer assistir um filme? Pague para a empresa que detém os direitos sobre a obra. Já pagou pelo seu livro, pelo seu disco, pelo seu filme? Mesmo assim, não pode sair por aí pelo Planeta Ômega fazendo o que bem entende com ele. Leia bem as letrinhas miúdas na embalagem, estrategicamente colocadas do lado de dentro para serem vistas somente após a compra, e você descobrirá que é vedada a cópia do livro mesmo para uso particular, que é proibido ouvir a música em mais de um aparelho, que está sujeito a multa e prisão quem tentar assistir o filme em outro país ou acompanhado de muitos amigos.
O jornalismo no Planeta Ômega funciona numa estrutura simples. Só as corporações produzem jornais, revistas e programas de rádio e tv. O público pode pagar para consumir esses produtos, mas não pode participar, não pode publicar opiniões ou comentários, não pode questionar. A única interação possível é "nós vendemos, você compra". A realidade é vista pela população não como um fenômeno multifacetado e sujeito a interpretações variadas, mas como uma monolítica versão dos fatos, profissionalmente moldada, editada, censurada e pasteurizada conforme os interesses da grande comunidade corporativa e sua grande divindade, o lucro.
Assim é o Planeta Ômega, que está em rota de colisão com o Planeta Alpha.
Essa colisão é o que estamos vivendo hoje. Não um choque espetacular, com rostos em pânico enchendo a tela e maquetes baratas voando em pedaços. O choque é mais sutil, desafiando as leis da física e colocando os dois planetas ao mesmo tempo no mesmo lugar. Habitantes do Planeta Alpha vêem-se subitamente no Planeta Ômega e não entendem o que está acontecendo. Onde estão minhas músicas gratuitas? Quem são essas pessoas tentando me convencer que só discursos acompanhados de verbas de marketing têm credibilidade? Por que não posso escrever minha opinião sem ser processado por quebra de direitos autorais? Também os habitantes do Planeta Ômega mergulham em confusão ao encontrarem-se no Planeta Alpha. Por que esses meninos estão pegando as músicas que eu criei e distribuindo por aí sem me pagarem um centavo? Como posso saber quem está dizendo a verdade se para cada acontecimento encontro versões diferentes em lugares diferentes? Como eu vou pagar o aluguel se tudo que eu produzo fica disponível gratuitamente e não sou remunerado?
A internet deste início de século XXI é a colisão do Planeta Alpha com o Planeta Ômega, e nós estamos vivendo nessa congruência planetária, sendo ao mesmo tempo cidadãos Alpha e cidadãos Ômega, presos numa transição rápida demais para que as mudanças possam ser processadas pelos nossos cérebros e pelas nossas estruturas sociais. Um pequeno grupo, cada vez maior, trabalha arduamente para que possamos viver na plenitude comunicacional do Planeta Alpha. Outro pequeno grupo, cada vez menor mas ainda detentor do poder econômico, trabalha arduamente para que não possamos nunca deixar para trás o modelo rígido do Planeta Ômega. No meio, a grande massa de leitores, ouvintes, espectadores, internautas, fica perdida entre os dois planetas, tentando dar sentido à confusão.
O exemplo do jornalismo é clássico. Com o surgimento de ferramentas de publicação simples e baratas, o monopólio empresarial sobre a distribuição de informação desapareceu. Já temos jornalistas sem jornais por todos os lados, editando seus weblogs e seus podcasts, verificando a veracidade do que a grande mídia corporativa distribui, checando informações, analisando opiniões, comentando os comentaristas. Esta é a parte boa. Mas de que vivem esses novos jornalistas? Que remuneração obtêm com seu trabalho? Apesar dos raros exemplos de indivíduos que conseguem sobreviver exclusivamente do dinheirinho amealhado com suas publicações independentes, a grande maioria dos blogueiros, podcastistas e zineiros mal consegue retorno financeiro para cobrir o investimento em armazenagem do site e transmissão de dados, muito menos algo que pague seu aluguel ou suas refeições. Várias soluções já foram propostas, do micromecenato das caixinhas de esmola digital aos anúncios vendidos a um tostão por clique, nenhuma porém resistindo ao duro teste da realidade. Assim, ao menos por enquanto, todos esses produtores de conteúdo independente estão condenados ao amadorismo, obrigados a terem outra profissão para pagar as contas e a deixar os sonhos de jornalismo-cidadão para as horas vagas.
A situação não é muito melhor para quem produz outros artefatos culturais, sejam livros, canções ou filmes. O público já está pronto para a revolução prometida pelo Planeta Alpha, com downloads gratuitos de qualquer coisa. Os artistas, porém, por mais que queiram divulgar seu trabalho, ainda vivem numa realidade ancorada no Planeta Ômega e necessitam de dinheiro para sobreviver. Experimente sentar num restaurante e dizer: "minhas músicas estão disponíveis gratuitamente online, pode me servir um filé com fritas igualmente gratuito, por favor?" Claro que ter o seu trabalho circulando pela internet aumenta as vendas, e por mais cópias piratas que existam online Dan Brown e J.K. Rowling continuarão vendendo milhões de livros. Mas para cada um desses escolhidos pela máquina do marketing corporativo existem milhares de outros artistas que serão obrigados a tentar a sorte por conta própria. Para estes, não existe solução à vista além de, como Blanche Dubois, depender da generosidade de estranhos.
Neste cenário de mundos em colisão, a perplexidade e o entusiasmo estão por todos os lados. Alguns espertalhões anunciam-se como gurus dos novos tempos e propagandeiam soluções milagrosas que para eles mesmos não funcionaram. Muitos carecas vendendo remédio para crescer cabelo, muitos homens sem pernas ensinando a correr. O importante agora é desconfiar muito de respostas prontas e tentar fazer cada vez mais perguntas. As soluções parecem elusivas, mas talvez seja só uma questão de tempo para que o Planeta Alpha e o Planeta Ômega se ajustem melhor em sua congruência e portas antes emperradas comecem a se abrir.
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