Simplicíssimo

Três cancros que se aproximam da filosofia

O deputado Sandro Mabel é candidato ao governo de Goiás pelo PL. Suas declarações afirmando que quem quer estudar filosofia não deve receber nenhuma ajuda estatal, pois o formando de filosofia não tem utilidade para o Estado, é deplorável. Não por causa das bolsas, que ele negaria. Nem por causa da “utilidade” da filosofia para o Estado – o que não deveria ser critério para nada. É deplorável, mas no seguinte sentido: mostra o quê determinadas autoridades pensam das “Humanidades”. Mas por isso mesmo, é colaborativa. A partir do que Mabel falou, podemos dar seqüência a um debate que já vinha aparecendo aqui e acolá, mas que com a fala dele voltou a “esquentar”. Recebi nessa semana, pela via direta de minha caixa postal ou indireta, por editoras e jornais, um quantidade grande de mensagens comentado o caso. O interessante foi notar que alguns trouxeram o problema para o plano da própria formação do filósofo. Afinal, o que é que faz um filósofo?
No momento em que escrevo, a filosofia está em alta. Saiu da baixa dos anos setenta, felizmente. Mas ao mesmo tempo, voltamos a ter um problema que no passado era diminuto. Os cursos de filosofia são procurados por um bom número de pessoas que, uma vez formadas, vão realmente alimentar o preconceito de gente como Sandro Mabel. E talvez até criem preconceito em gente bem melhor que Sandro Mabel. Pois há três pragas querendo se agarrar nos cursos de filosofia, e que podem em pouco tempo por tudo a perder. Essas são as três ervas daninhas da filosofia no Brasil: “ensino de filosofia”, “filosofia para crianças” e “filosofia clínica” – nossos cancros.
Disse e digo mais uma vez: filosofia é, já, no momento em que está sendo feita, diálogo pedagógico, portanto, em certo sentido, ensino. Separar ensino e filosofia para, agora, tentar agrupá-los através da criação de uma área institucional chamada “ensino de filosofia”, que iria fazer uma reflexão sobre o assunto, é não entender nada de filosofia. Quem quer ver como se ensina filosofia ou como se aprende filosofia, uma vez que é filósofo, já viu. Pois se é filósofo, leu filosofia e viu que filosofia é assim: o estudante lê acompanhado do filósofo, que aponta para ele relevâncias no texto. Quando mais leituras ricas, mais relevâncias distintas e boas. E assim, em determinado momento, ele, aluno, está filosofando. Não há mágica. Não há didática. Não há “ensino de filosofia” como algo que mereça uma reflexão. Quem fala em “ensino de filosofia”, em geral, é quem não conseguiu lugar na filosofia propriamente dita. “Ensino de filosofia” é lugar de fracassado da filosofia.
No caso da “filosofia para crianças” o que há é a tentativa de algumas mães e professoras e, em parte, também os fracassados da filosofia, de tentarem salvar as crianças. Elas, as crianças, estariam crescendo sem o “pensamento crítico e reflexivo”, e então a filosofia viria tirá-las deste destino de burrice. Ora, não é preciso comentar. Se as crianças forem bem educadas, fazendo seus problemas de matemática e refletindo sobre eles por meio de “O homem que calculava”, aprendendo história e literatura lendo o Monteiro Lobato e o Machado de Assis, tudo estará indo conforme queremos. No colégio, o professor de história ou de português ou o professor de filosofia, poderá lhe dar Platão. Não há uma área de “filosofia para crianças” que deva ser criada. Se houver, é mais um gueto dos fracassados da filosofia.
Por fim, a “filosofia clínica”. Nesse caso, a coisa é pior. Filosofia clínica ou não é nada ou é auto-ajuda. Uma pessoa que pega uma frase qualquer de um filósofo e começa a refletir sobre ela para tentar colaborar com a vida psíquica de outro, não é uma pessoa saudável. Tem um defeito cerebral. É uma pessoa um tanto boba. Pois filosofia não é feita de frases do tipo provérbio. Um provérbio chinês colocado em um calendário é uma coisa, filosofia é outra coisa. Filosofia tem a ver com os problemas de um tipo de literatura criada na Grécia a partir de cosmólogos e, depois, moralistas e metafísicos. Esses foram sempre ajudados por lógicos. Hoje em dia, por lingüistas e cientistas. Aqui, há todo um mundo específico e especial.
Sim, é claro que a filosofia pode querer fazer algumas pessoas viverem bem. Ora, não foi Sócrates mesmo um homem preocupado com isso? Fazer perguntas morais para as pessoas? Mas Sócrates, ele próprio, entendia que ele não está colocando cada pessoa no divã, ele estava colocando Atenas no divã – e num divã especial. Um divã onde as leis de Atenas ficariam na porta do consultório, mas os homens entrariam todos. A Escola de Frankfurt, por sua vez, colocou toda a modernidade no divã, e com ela, a razão. Ali no divã, chamou a razão de razão instrumental. O filósofo é sempre a “consciência de sua época” ou de seu povo. Nisso, muitas vezes, ele é também um terapeuta. Mas para tal, ele está inserido em uma tradição de discussão – a filosofia.
A “filosofia clínica”, que não é filosofia, é praticada por meio de um aglomerado de frases de filósofos sem qualquer sentido, jogadas para um paciente (um “partilhante”, eles, esses malucos, dizem!) sobre sua cabeça. Este, que nunca viu filosofia, acha que aquelas frases estão falando algo a respeito da vida dele, de problemas particulares que ele está passando, no âmbito psíquico. Sim, pasmem, mas há gente suficientemente bobinha para achar isso! Esse tipo de coisa é pior que auto-ajuda. Não se trata de uma prática mística, de quem vai consultar uma cartomante ou um jogador de búzios. Se trata de uma prática onde uma pessoa tola vai consultar um picareta, ou um burro. Pois ninguém pode ser inteligente e achar que a filosofia e as frases proverbiais são a mesma coisa. Que isso seja feito por tolos e espertões, tudo bem, mas não pode contar com as instituições que, seriamente, possuem cursos de filosofia. Pois se isso adere à filosofia, logo logo o Mabel terá toda a razão.
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo.

Girafa Simplex

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