– A velha, boa e saudável vida virtual, com toda a família reunida em torno da placa de circuito para recarregar a bateria, está ficando na saudade. Já diziam os antigos, cobertos de razão, que o recarregamento é hora sagrada. Todos devem largar o que estão fazendo e dar graças para se realimentar. O próprio nome “celular” vem de célula, e a célula mater da sociedade é a família. Isso antigamente, né. Hoje ninguém está nem aí… nem nossos filhos.
– Concordo, meu amor. Estamos parecendo aqueles infelizes do outro lado do visor. Mesmo quando estão juntos, parecem estar sozinhos. Coitado desse povo de carne e osso.
– Bom mesmo era em mil novecentos e bolinha, aqui do nosso lado. Você com certeza se recorda como os aplicativos interagiam, abriam suas janelas sem medo dos hackers de tocaia atrás dos ícones, prestes a atacar e invadir o sistema.
– Ai esses meninos… olha lá, é só descuidar um pouquinho e pronto! Não se pode virar as costas e eles já ficam com a cara enfiada na tela pra espiar o lado de fora, vasculhando o maldito mundo real! Não sei que graça veem naquilo.
– Covid, violência, guerra, inflação, desemprego, Jair Bolsonaro. Precisa ter uma tela muito estreitinha para se contentar com estas porcarias.
– Bons tempos os minha avó, nascida na era da internet discada, das salas de bate-papo, quando ainda se faziam buscas no Altavista e no Cadê! Ô meu Deus, que época boa! E minha mãe, então? Praticamente uma viciada no ICQ. Já o meu pai foi um dos 50 primeiros seres desumanos a terem uma conta no Orkut.
– Verdade. Estava aqui puxando pela memória RAM e me recordei quando a gente brigou, lembra? Joguei suas fotos sem backup na lixeira, tirei você do meu papel de parede, jurei que não ia deixar um áudio sequer de recordação.
– É, mas não demorou uma semana pra gente reiniciar. Mesmo eu tendo descoberto uma ligação perdida sua para um número desconhecido.
– Nada de mais, tinha todo direito, a gente não estava mais junto. Entrei no modo avião e viajei adoidada, conheci chips novos… cheguei a ficar com dois ao mesmo tempo! Fiz planos e mais planos, todos ilimitados.
– Tolinha.
– Você é que pensa…
Esta é uma obra de ficção.
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