Na margem direita do papel onde escrevo, desenho uma estrela de cinco pontas.
Ponta 1 – Eu mesmo, os meus problemas. Tão grandes, tão pequenos, tão desprezíveis em relação ao que houve na manhã de 20 de agosto. Vinha eu no carro e o sinal fechou. Tão absorto, tão metido em mim mesmo, tão ausente do mundo eu me achava que era o próprio o mais infeliz dos homens. Um pedaço do que amo, eu soubera, num instante de fraqueza atraíra sobre si a hipocrisia e a maldade das pessoas. Por que os pedaços de carne e alma da gente são tão independentes de nós mesmos? Então eu abro a boca, quero ar, e a única conseqüência disto é engolir a poeira que sobe do asfalto.
Ponta 2 – Uma voz me chama à janela do carro. A essas vozes, no geral, a gente nem olha. São sempre pedidos, oferecimentos do que a gente não quer comprar, morangos, bonés, chaveiros, contribuições para o combate ao câncer, cajus sem cheiro, esmolas para igrejas, quinquilharias. Mas dessa vez a voz possuía outro significado. Ela me chamava num tom que o preconceito repugna. E um preconceito tal que ruboriza escrevê-lo, em razão da mesquinhez da repulsa: a rejeição à voz feminina que sai de uma garganta masculina. É uma voz que ondula, oscila, fêmea na freqüência, mas sabemos, sem vê-la, que não vem de mulher. Nela há um quê de exceção, ou de artifício. No entanto, a esse acúmulo de repulsas e de preconceitos que não se expressam abertamente, apesar disso, levantei os olhos.
Ponta 3 – O dono da voz é um jovem de cara lisa, lisa e limpa, sem adornos, pêlos ou máscara. Tem os olhos grandes, arregalados. Eu conheço esses olhos. Em rostos distintos, em épocas diversas, de tanto vê-los eu aprendi a conhecer esses olhos. Tomam de assalto a gente. Um dia já me meteram medo. Olhos do meu pai, grados, prepotentes, brutais. Olhos de guia de cego, que cresceram no esquivo à pancada. Que vêm da genética de escravos, de raiva, no açoite. Para a minha felicidade, houve e há outros. Porque os olhos, por serem simplesmente grados, não são iguais. Estes que me chegam pela janela do carro, no breve instante em que o sinal não abre, são outros olhos: de medo, de espanto, de fome. Olhos tão conhecidos que desconfio que em algum ponto da vida eu possuí esses olhos. A expressão deles, em vez de severa e implacável como a do meu pai, é suave, suplicante:
– Senhor, dez centavos para o teatro.
Então escuto a voz, então percebo os olhos, então a força do que a voz fala supera, vence e destrói o preconceito. “Dez centavos para o teatro”. Sem exclamação, sem que seja preciso dizer, “homem, se tem a minha humanidade, veja quantos centavos merece o teatro”.
Ponta 4 – Esse pedido sai dos olhos e supera a voz. Ele me remete a outros artistas, me leva a outras artes. Tudo muito unido, rápido, sem que se detenha em compartimentos separados, unificados neste pedido, tornados no corpo destes olhos e desta voz. Recordo então um artista no bar Marola, em Olinda, que pedia dinheiro como pagamento para escrever nomes de clientes em grãos de arroz. Como são eloqüentes os artistas! Como sabem simbolizar com a precisão da flecha que atinge o olho da mosca. Para comer, esse artista no Marola escrevia minúsculo em grãozinho de arroz. Era um jovem, pálido, e é interessante como o vejo vestido em túnica grega a desenhar a mediocridade de toda a gente em grãos miudinhos. Melhor que a sua arte era o orgulho da sua arte. Enquanto percorria as mesas ele era insultado. Dele zombavam os miseráveis com dinheiro na carteira:
– Se eu fosse viver disso…
– Planta arroz, dá mais futuro …
Enquanto ouvia isto, ele e seu orgulho, albatroz ferido, cantava baixinho: “Ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas, estrada natural. Que ligava Minas ao porto, ao mar, caminho de ferro, andar, andar”. Os clientes ouviam e, casca grossa, carteira cheia, a dignidade do homem não os atravessava. E sem transição esse pedido dos centavos remeteu a outro artista, um adolescente magro e faminto de Água Fria, que desejava ser ator e fora pedir um estímulo a um endinheirado empresário, que se dedicava ao teatro nas horas vagas. O burguês olhou-o de cima a baixo, mediu o jovenzinho só olhos:
– Você?! Você entrar para o teatro é o mesmo que entrar no mato sem cachorro.
Ponta 5 – Então eu, este senhor que pela aparência exterior julgam ser um homem sensato, decente, então este senhor, abalado pela eloqüência do pedido na janela do carro, moveu-se. Antes que o sinal ficasse verde, sem nenhuma vergonha, sem-vergonha, desavergonhadamente, joga à mão do jovem 4 moedas de 10 centavos. Então uma delas cai-lhe fora da mão. O jovem ator se curva para apanhá-la. O sinal abre e os carros, impacientes, voam. Quase o arrastam pela cabeça. Para sorte minha os carros não o matam. Curvado, à procura da moeda que caiu, ele me deixa a última impressão dos atores que agradecem os aplausos recebidos.
Cinco pontas concluídas, estrela fechada, reflito. Artistas assim vivem num limbo. Pela falta de tudo, pela “inocência”, esses artistas sem nome vivem num limbo, como as crianças que morrem sem batismo. Artistas assim somente sobem ao céu quando um carro os alcança. Sobem, mas lá não ficam, porque logo voltam contra o asfalto. Mas isso, é claro, a gente nunca percebe. Na hora, na urgência do trânsito, à espera de que o sinal abra, sob o abrigo de mil e uma desculpas, a gente nunca vê a dignidade do homem que põe a cabeça em nossa janela e pede:
– Senhor, dez centavos para o teatro.
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