Simplicíssimo

Escolas de escritores

Um tema recente, que andou a incendiar as letras do Brasil, foi a existência de um curso para a formação de escritores. Entendam, não é bem um curso para a educação dos modos, bons maus modos de gênios, como, por exemplo, o ensino do respeito aos semelhantes, ora, o respeito, menos, que ensine a ler o que os “semelhantes”, deveríamos dizer, inimigos, escrevem. Nada de ética, ora de ética, bem menos, nada de normas de convivência civilizada entre os pares, todos ímpares, no próprio julgamento. Não. Esses problemas sequer são postos, ou porque impossíveis de serem alcançados no meio culto, ou porque não interessam, haja vista o princípio basilar da nova estética: se queres ser um ótimo escritor, tentes antes ser um melhor canalha. Não. O objetivo é mais alto e menos problemático, julga-se. É um curso de graduação universitária para fornecer as ferramentas, as informações, as, antecipemos já já já, como grafam o som do riso em espanhol, as técnicas, para que alguém diga com um pergaminho, eu sou um escritor. Formado. Graduado. Licenciado, já já.  Esses cursos na Europa e nos Estados Unidos, no “primeiro mundo”, não são novos. A globalização é mesmo um destino. Se não temos o Louvre, o Prado, as artes de Florença, florescemos já já em escolas de escritores, com um pequeno atraso no fuso horário, ou histórico. Mas ali como aqui, tanto antes quanto agora, algumas questões ainda não tiveram resposta. Por dever de imparcialidade, como ensinam os manuais de repórteres, por fingimento de imparcialidade, como ensinam os manuais da experiência, passamos a enumerar as opiniões a favor e contra essas escolas de escritores. “Muitas pessoas se escandalizam com a idéia de cursar letras para se tornar escritor, e não há como convencê-las de que isso é tão estranho quanto estudar arquitetura para se tornar arquiteto”, afirma um criador desse curso no Brasil. Aqui, o escândalo maior é a forma simplória com que se expõe uma ignorância. Que existam Escolas de Arquitetura, de Medicina, de Direito, de Matemática, e nelas se licenciem bons, maus e péssimo arquitetos, médicos, advogados e matemáticos, isto é uma contingência óbvia, incontestável, em qualquer quadrante da Terra. Pero o passo mau, ligeiro e estúpido é o acreditar que num mecanismo de lógica formal se diga, “assim como existem cursos para A e B, assim também existirão para D e E”. Porque há uma repulsa de natureza, intrínseca, visceral, um repelente fundo entre o fazer literário e o fazer de uma profissão da vida prática. Só um cruel empobrecimento da literatura faria com que se formassem escritores assim como se ensina alguém a cortar um ventre, para o bom exercício da cirurgia. Sem os olhos de Rembrandt. Ou seja, se redefinimos escritor como todo aquele que escreve, não importa o quê nem como, então estaríamos em paz – ensinar a escrever é como ensinar matemática, das operações mais simples às mais complexas. Mas o leitor que nos acompanha, o escritor que nos suporta, sabe que com a escrita literária não é bem assim. Se na física, por exemplo, ninguém começa por estudar Einstein, na literatura, este é um problema, somos fascinados e perseguidos por ela a partir dos seus gênios. Que se disfarçam e são tomados como gente simples, de boa conversa, sem maiores pretensões. Assim, começamos na infância com Andersen, Mark Twain, somente, com esses escritores bobos, gente boba, idiota. Depois entramos na adolescência com Allan Poe, Gogol, Dostoievski, até que amadurecemos e vamos a Machado, Tolstoi, Goethe, até o cume de Cervantes. “Somente”. Ou seja, a didática da literatura é o seu próprio esplendor. É o seu brilho máximo, a ponto de cegar de luz, de tão forte.              

“… Estudar letras para ser escritor? Como alguém pode aprender a ser escritor? Onde fica a inspiração? Então não existe talento? Nesses momentos, respiro fundo e explico que sim, Beethoven e Picasso tinham muito mais talento em suas respectivas esferas do que a média das pessoas; mas de nada adiantaria esse talento se eles não o tivessem desenvolvido através do contato com professores, fazendo exercícios, copiando, praticando, treinando, imitando, até se tornarem mestres”, continua o criador, de um curso. Aqui se misturam idéias, frases, momentos, num crescendo de disparates, disparados. Momento 1: “Como pode alguém aprender a ser escritor?”, pergunta que ele faz como se soubesse a boa resposta, a óbvia: numa escola, idiota. De preferência, na minha, ora, ora. Momento 2 : “De nada adiantaria o talento, se Beethoven e Picasso não o tivessem desenvolvido no contato com professores”. Ainda que olvidemos a mistura de música, pintura e letras como se fossem uma só e uma só coisa – tudo é arte! -, aqui se comete, na pressa, alguma ligeireza histórica. Os professores de Beethoven não vieram bem de uma escola formal, de Conservatório ou coisa que o valha. Um dos seus mestres, presentes no seu cotidiano, em aulas particulares, foi um indivíduo que a história chama de Mozart. Outro foi Haydn. Somente. Quanto a Picasso, se ele tivesse ficado com as lições da Escola de Belas-Artes, o mundo não o conheceria. Ele aprendeu e apreendeu o próprio gênio com outros gênios em Paris. Somente.    
 A uma crença antiga, a de que escritores e artistas nascem feitos, prontos, com um talento diferente do resto dos homens desde o berço, crença que é tão fantasiosa e absurda quanto crer que a criança é um homem completo, maduro, que ela seria a mesma pessoa em qualquer vida, família, classe, terra ou século, como uma realização do espírito eterno em molde de ferro, a essa crença que não resiste ao fato de que também aprendemos a ser o que somos, pois o nosso ser se adquire também, a esse fato se acrescenta o caminho fácil de que aprendemos a ser plenos na escola. Formal. De lições e professores em salas de aula. Com exercícios, provas, testes, notas e diplomas de conclusão de curso. Mas até hoje, e esta é uma afirmação que não carece de confirmação exaustiva, até hoje não houve uma só escola que formasse e gerasse talentos. Pelo contrário. Qualquer indivíduo que se eleve acima da média tem sido sempre um homem que se fez apesar da escola. Ou em franco protesto e rebeldia contra o ensino formal, burro, estúpido e asfixiante das escolas. De Norte a Sul, de Leste a Oeste do planeta. Isto de maneira geral, digamos assim, nas escolas que formam físicos, matemáticos, arquitetos ou músicos. Chamem-se Cambrige, Oxford, Petrolina, Recife ou Juazeiro. De modo mais particular, de uma escola para escritores, então, o desastre e deserto prometem ser maior e mais fundo. Nelas, melhor dizendo, a partir delas é não só impossível a formação de um grande escritor. Os médios, os médios médios mesmo, não nascem a partir das suas inteligentíssimas e extraordinárias lições. A escritora Maria Valéria Rezende pôs um dedo na ferida em mensagem ao sítio Cronópios :  “Tenho minhas dúvidas de que bons, e sobretudo excelentes livros se possam fazer só com técnica e talento, dispensando-se a experiência de si mesmo, da vida , do mundo que só um certo grau de maturidade pode dar”. Para não falar de um valor moderno, permanente, que as novas correntes julgam démodé, antigo, para nada dizer de que na escrita existe um valor moral, impossível de ser ministrado em currículos, digamos que na realização da escrita, no seu fazer, ocorre um homem total, pleno, que sobe o sangue, que envenena o fígado, que goza e faz rir o coração da gente, que mata e nasce, que morre e renasce num texto. Isto no momento imediato da escrita. Mas ela se produz, gera-se e vem antes, bem antes, muito antes de se pôr diante de uma folha de papel, de uma tela do computador. Ela vem apanhando da vida, ela vem estudando a vida, ela vem observando e sendo observada, a ler e a ler, a estudar e a estudar, a errar e errar, e raro acertar numa fração de tempo, quando deus é servido. Ainda assim em dúvida, em permanente dúvida do que fez e conseguiu. Daí que todo escritor está sempre a meio caminho entre um masoquista e um vaidoso arrogante. – Diga que eu não presto!, ele se dirige a um leitor, a um crítico. – Você presta, respondem-lhe. – Diga que eu não valho nada! – Você é bom. – De novo. – Você é bom. – Será, será, será?  E recomeça como um Sísifo. Ora, esse fenômeno humano é incapaz de ser formado em um laboratório, ou em cursos ou em salas de aula. Se maçãs, se uvas se plantam, se bananas se plantam e delas se fazem enxertos, experiências e amostras em cercados e cativeiros, se as rãs, os sapos, os pássaros, os cães se criam em processo de seleção e de sucessivos cruzamentos, e deles se fazem novas raças, muitas até previsíveis, como Frankesteins que tiveram sucesso, o mesmo não se pode fazer com um processo que vem da história, das circunstâncias, dos azares e da sorte ao longo de uma existência. Seria algo como se fosse possível a produção do amor em laboratório. A produção do sentimento em provetas. O sonho, a sua fruição e viagem a partir de 10 lições inesquecíveis. Em resumo, por fim, como se fosse possível o Dom Quixote sem o cativeiro do autor na Argélia, sem a guerra, sem as leituras e estudo, sem o século de ouro da literatura espanhola. Ou para dizer com a felicidade que Camões expressou, sem “o saber de experiência feito”. 

 

Urariano Mota

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