Simplicíssimo

Memórias de futebol


  Até onde lembra a memória, por mais seletiva de momentos honrosos que ela, trapaceira, ergue à consciência, um momento é inolvidável das minhas ações no futebol. Por mais seletivas jogadas das quais a memória faz um grande time, um dream team, esta que lhes vou contar é a número 10, o rei, a rainha das rinhas, de todas. Em resumo, já lhes digo, eu tinha oito anos. Nessa idade em que nascem os craques, em que já desponta neles o talento, eu, como todos os craques, adorava futebol. Adorar, no caso, quer dizer não pensar nem sonhar com outra coisa, é jogar, jogar, dentro de campo, fora de campo, com bola, sem bola, como tempos depois demonstraria Tostão, na seleção brasileira de 1970 no México.  Eu havia ganhado uma bola em 1958, quando o Brasil fora campeão na Suécia, lembro bem. O meu regalo de aniversário, que no México chamariam de cumpleaños, havia sido uma bola de látex, de borracha cinza, boa, grande, um presente e um regalo superior para todos os meninos que jogavam com bola de meia, que ficava redonda à custa de papéis, panos velhos e de trapos socados. Assim posto, assim orgulhoso e contente, dirigi-me à rua, que no meu caso era sair para o beco, percorrê-lo e atingir a esquina, onde em frente a um prédio em construção reuniam-se os meninos para jogar com bola de meia e inventar o impossível, fazê-la rolar como rolam as bolas de borracha. Pero nesse dia resistente na memória eu era a seleção, mais que Didi, Pelé, Vavá, aqueles que bailaram lá na Europa (e a Copa vem pra cá), porque eu era esse grau supremo, acredito que em todas as nações do planeta, a maior autoridade e espetáculo, o majestoso e supremo dono da bola.  Que para ser dono não é preciso dom, que em qualquer sociedade da terra, em qualquer tempo, isto é histórico, substitui o dom de jogar bola. Cercaram-me. Os meninos cercaram-me. E eu, em lugar de abarcar sozinho o troféu, orgulhoso, gilipollas, dizia-lhes, mirem, e eles, com sede, mais que miravam, executavam malabarismos com a minha bola, para me assegurar, aduladores, que bola como aquela no mundo inteiro não havia. Eu acreditava, diria mesmo, todos acreditávamos, até mesmo os cruéis e pérfidos aduladores. Bola e dono da bola como aqueles no mundo inteiro não havia. Acreditava e hoje mais que antes possuo a certeza. Então, terminados os cumprimentos cortejadores, então, para melhor encantamento, decidimos jogar. Sim, para que desejamos e desejávamos todos uma bola? Para exibi-la e recolhê-la depois? Não, não, e definitivamente não.  A frente do prédio em construção era boa. À margem da Avenida Beberibe, como a boca de um funil, cujo canal era a estreita passagem do beco, que se chamava, e ainda se chama, Travessa da Rua Alegre, a frente do prédio era de terreno bom e macio, com torneira baixa, para despejar água usada no cimento da construção do prédio. E por isso e por vontade, gana, que dizíamos “secura”, naquela manhã de 1958 resolvemos jogar, melhor, resolvemos todos estrear um novo jogo com a minha belíssima bola de presente. Novo como nunca se vira até então, e até hoje, acredito.  E aqui solicito ao leitor uma suspensão. E lhe digo: nada do que lhe vou contar, nada do que escrevi até aqui, é mentira, invencionice ou invenção. Será fantástico, eu bem sei, será extraordinário, bem tenho a consciência. Pero acredite, meu amigo, meu leitor e meu cúmplice: o extraordinário, o fantástico, o inusitado e absurdo é o real. Deus e os duendes, quando são camaradas, permitem à gente contar. Pois bem, resolvemos jogar. Era um costume então entre os meninos, não sei se perdura até hoje, o expediente que chamávamos de “tirar o time”. Ou seja, os líderes naturais dos meninos, que podiam ser os melhores jogadores, ou os mais ricos, os menos miseráveis, os mais fortes, ou os mais valentes, escolhiam aqueles que iriam jogar em seu time. Assim estabelecidos, os líderes escolhiam, com um risco no chão, na terra do campo, os dois times, com a frase, com o mantra:  – Esse é meu. – Esse é meu.– Esse é meu, esse é teu…. Quando ocorria de um bom jogador ser disputado por ambos os líderes, oferecia-se um menino ruim, como um jogador a mais ao time que ficava sem o Pelé. Compensavam.  – Nego.– Nego é meu! – Você pode ficar com Dirico, a mais. – Essa ruindade eu não quero.– Dirico é ruim, é? Ele sabe marcar, ele não deixa ninguém jogar.– Então fica com ele!– Tu só pensa em ganhar… Pode vir, Dirico.        Os excluídos, assim incluídos, faziam ponto de honra em transformar a sua desonrosa escalação em vitória do time que o abrigava. De preferência, derrubando, de todas as formas e maneiras, o Nego. Pero como eu não me chamava Dirico, porque eu era o titular absoluto da seleção nesse dia, deixei-me acompanhar sonolento, entediado, a escalação dos dois grandes times:  – Esse é meu…–  Esse é teu…– Pronto. Vamos jogar.  Então eu, o sonolento, ainda meio tonto, acordei.  – E eu? Em que time eu jogo?    Então o mais sábio, o mais inteligente e sabido líder, com ar de negociador norte-americano em terras de petróleo, me disse, com voz terna, aveludada e conciliadora: – Depois. Isto de agora é só um treino. No jogo mesmo tu entra. Então jogaram. E eu, que não era Dirico, porque de maneira nenhuma poderia ser oferecido como uma compensação, naquele augusta hora, durante bons 60 minutos, assisti ao treino do jogo que viria. E como tudo tem um fim, para desgraça ou graça o treino acabou. E desta vez foi a minha vez de me acercar dos líderes: – Agora vamos jogar. – Olha, já é meio-dia. Amanhã tem mais. Vamos, turma? 

E me devolveram o troféu, o meu regalo, a minha bola. Honestos, na devolução. Ficamos então a olhar, a mirar, sem acreditar no que víamos, sentados, para no chão não cair. Eu e a minha pelota. Por isto digo e escrevo, sem muito orgulho, que a César o que é de César, e a Tostão o que é de Tostão. Porque nesse particular de jogo sem bola, em 1958 eu sou e fui o pioneiro, por me antecipar ao craque no México em 1970. Ninguém, nenhum dono da bola jamais jogou sem bola como este que lhes fala.   

Urariano Mota

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