Em um dia distante, as letras já foram chamadas de belas letras. E apesar de assim se chamarem, de belas, e para melhor belo belo, terem como objeto a beleza, nem assim defenderam à altura os seus cultivadores. O poeta Geraldino Brasil, que bem conhecia o trato, assim viu como são recebidas as belas letras na boa sociedade: “CLASSE MÉDIA Um médico.Ótimo na família. Um executivo.Ótimo. Um engenheiroUm arquitetoUm magistrado. Ótimo. Um poeta. Melhor na família dos outros.” Mas falar nesse tom, irônico e apolíneo, infelizmente não nos serve. Bem que eu gostaria de continuar nesse diapasão, para, defendido pela paciência e método, construir um discurso sobre a serventia da literatura. E para melhor estilo, o que sempre impressiona, concluir pela sua absoluta inutilidade. Mas deixemos de lado esses maneirismos de elegância, de bocejo, tédio e falsa altura. Deixemos, porque, meus amigos e inimigos, este artigo é sobre a grande, absoluta e imprescindível utilidade da literatura. Falarei apenas do que sei, falarei apenas do vivido. Nada do que adiante se escreve foi lido, ocorrido a outros, em outras vidas ou experiências. Falarei apenas da minha própria, miserável ou medíocre, pouco importa. Minha primeira impressão prática, material, das letras me veio na adolescência. Eu tenho um amigo, eu tenho um inimigo (e assim deveríamos nos referir sempre aos amigos, pois em cincunstâncias históricas estão do nosso lado, ao nosso lado, e em outras mudam de sinal e amizade), eu tenho um amigo que um belo dia me pediu uma redação. Não lembro do tema, desconfio que era sobre a ciência e o nordeste brasileiro. Lembro do real motivo que me moveu: meu amigo, meu inimigo, se achava em dificuldade, porque a depender daquela redação ele seria aprovado ou reprovado em português, no terceiro ano colegial. Movido pois de bom espírito, escrevi, na inexperiência dos meus 18 anos, e invoquei Prometeu e seu fígado para fortalecer as precárias linhas que unem, ou deveriam unir, a mais avançada ciência e o nordeste do Brasil. Soube muitos anos depois, quando a minha própria necessidade material não era das mais nordestinas, que aquela redação servira para meu amigo ganhar um prêmio. A redação era para um concurso no colégio, e ele pôde andar pelas noites do bairro com uma belíssima camisa, fruto do primeiro lugar alcançado com o fígado de Prometeu e minha invocação aos deuses do Olimpo. E melhor lembro da sua argumentação, para justificar o ato, com palavras dignas de outros gregos, os sofistas: – O prêmio era somente uma camisa. Uma e uma só, e dois pobres necessitados. Como é que eu ia dividir o prêmio? Eu podia cortar a camisa ao meio com uma tesoura? Era justo. A sorte e a esperteza não escolhem cara. Os que não são espertos somente possuem a seu favor a persistência, e um prudente afastamento dos abençoados pela sorte. Poucos anos depois, narrei uma aventura vivida com esse mesmo amigo num prostíbulo, na forma de um conto, sob o nome de Uma noite na Bahiana. Publicado na revista Ficção, misturado a Millôr Fernandes e a Fernando Sabino como joio no trigo, o conto rendeu um pagamento um pouco melhor que uma camisa, e até hoje rende uma certa alegria, e sorrisos, em quem o lê. Até aqui, está visto, falei do que me aconteceu, mas não uni a própria e miserável experiência ao título deste artigo. Para que é mesmo que serve a literatura? De um ponto de vista estrito de grana, de moeda que compra alimento, álcool, camisa que sirva além do corpo de quem escreve, que vá além da vaidade do autor, existe alguma utilidade na literatura? Existe algo nela que diga, somos todos humanos, e o reino da felicidade é a socialização da carne espírito? Existe nela algo que, sem cair dos seus objetos mais nobres, chame a atenção para que a poesia tem um poeta em estado de necessidade, e por isso lhe traga um pouco mais de carinho e pão? Sim, sim, sim, e sim. Aqui eu deveria encerrar. Mas se assim faço, fica a parecer uma profissão de fé, de crença fanática e cerrada nas letras, de romantismo suicida, e mais nada. Por isso, por favor, convido-os a ler a crônica Oração por Chico Soares, Canhoto da Paraíba. E esqueçam por favor o gênero do escrito, se é um artigo jornalístico, se é uma crônica, se é uma oração, se é uma beatice, se é um poema em prosa, ou se é uma pura e simples e reles apelação. Esqueçam gênero, limite e autor, que, saibam, é imensamente inferior, para não dizer, ou dizendo melhor, não existe, diante da imensa pessoa e arte e má sorte do violonista. E saibam então que a literatura, mesmo quando se traveste de artigo, de crônica, de má literatura, de oportunismo e apelação, saibam que a literatura tem utilidades, práticas, ao largo e além de quem escreve. Assim digo porque, depois que a Oração por Chico Soares, Canhoto da Paraíba foi transmitida no dia 7 de setembro pela Rede Globo de Televisão, no programa Mais Você, de Ana Maria Braga, a sorte de Canhoto já não é mais a mesma. Dirão, os amigos: “o que dizes da literatura, para chamar a atenção para a tua crônica, enquanto finges falar de outro…”, dirão os amigos, “o que dizes da literatura, do seu poder de melhorar a sorte de outros, nada mais é que o extraordinário poder da Rede Globo de Televisão”. E concluem, ou melhor respiram, para melhor desferir: “Canhoto estaria na mesma merda, por tua crônica, se Ana Maria Braga não tivesse entrado no circuito”. A estes, respondo: já não é uma grande coisa que um texto, publicado na Internet, tenha recebido essa divulgação? Já não é, para usar o mote da Oração, em si mesmo um milagre? Outros, mais cautelosos, ou mais inteligentes, perguntam, “Como conseguiste isto? Qual foi a fórmula de aparecer no Mais Você?”, o que é o mesmo que perguntar, “Que instrumentos sórdidos, baixos, muito espertos, usaste para conseguir tamanha divulgação?”. Esqueçamos de responder a tão alta pergunta, assim como não respondemos àqueles que nos restringem com um, “como pode um ateu, um materialista, pedir socorro à Virgem Maria, a Nossa Senhora?”. Há, acreditem, esse gênero de restrição. Passemos ao que importa. O violonista Canhoto da Paraíba vai receber uma pensão do Governo da Paraíba, pensão pequena, é certo, de dois salários mínimos, mas pensão, que antes ele não possuía. Haverá a Lei Canhoto da Paraíba, para beneficiar os artistas paraibanos que se encontram em situação semelhante à sua. Isto ocorreu depois do programa de Ana Maria Braga. É muito pouco, é certo, quando se sabe que o governo de Pernambuco faz que nem é com ele, quando a pessoa física do governador esquece as noites de uísque sob o som do violão de Canhoto. (Dizem que o álcool traz um certo esquecimento.) É pouco ainda, mas nesse quase nada, no dia 8 de setembro músicos visitaram a sua casa, e para ele fizeram um sarau, somente para ele, em sua cadeira de rodas. Ele, o mesmo artista, que numa noite de aguaceiro forte em Maranguape I, quando eu queria sair, me reteve com um pedido: “Não se preocupe com a chuva. Ela passa. Não vá agora não”. É pouco, ainda: mas pessoas ligam para a sua casa, e prometem um serviço médico. É pouco ainda, mas antes de Ana Maria, muito antes da crônica, Canhoto já era dado como um artista morto.
Está aí para que serve a literatura. Para sair na Rede Globo de Televisão, para ser lida como um poema no Mais Você, para fazer de Ana Maria Braga uma atriz. Para no dia 7 de setembro, Vitória, a filha do violonista, ligar para um religioso autor e anunciar: “O governador da Paraíba acaba de ligar, papai vai ter uma pensão”. E ouvir, como resposta: “Este é o melhor 7 de setembro de minha vida”. Assim o autor disse porque não poderia na voz dizer: obrigado, amiga, acabas de me anunciar para que serve a literatura. Para diminuir um pouquinho que seja o sofrimento e a dor da gente.
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