Simplicíssimo

Ronald Golias, ou quando o riso era remédio

Se o comum da gente soubesse o gozo imenso que vem da arte, se a gente comum vivesse o prazer grande que é viver na arte, se a gente de todos nós despertasse para a libertação que vem da arte, se, quando e se e então pudéssemos renascer, viver mais uma vez com a consciência da vida anterior, ah, então saberíamos todos exaltar e ver e ser a felicidade que vem do artista.

 
Essas palavras nos vêm porque as idéias nos atropelam. Quando brotou o parágrafo acima, queríamos apenas dizer em uma só frase e golpe: adeus a Ronald Golias que éramos e somos ignorantes do valor que ele possuía no mundo que se vai com o artista. E mais, e más e mas e porém: por que a burrice humana teima em somente ver o gênio póstumo? por que não vemos  o  gênio em carne e osso que se move diante dos nossos olhos? Deveríamos, em nome da coerência, desprezá-lo igualmente quando parte sem volta. Deveríamos, até em nome da justiça, adotar o princípio de que se um homem não foi valorizado em vida, assim continuar pelos séculos póstumos.  
 
Em compensação, acompanhem a crueldade, como não temos uma segunda existência, recebemos todos o dom e a graça de lamentar o que perdemos, como se o chorar o bem perdido fosse a própria segunda oportunidade. Por isto, permitam essa breve inscrição na lápide que confirma a estupidez humana, permitam, pois, que se inscreva e se escreva esta verdade póstuma: Ronald Golias foi o maior ator cômico do Brasil. Dizer assim é fácil, parece mais frase à beira do túmulo, daqueles discursos que arrancam mais lágrimas pela hipocrisia que pelo morto. Digamos de outra maneira: se o ator cômico é uma categoria mais alta que o ator dramático, digamos então esta conseqüência singela: Ronald Golias foi o maior ator do Brasil. Mas dizer isto ainda é muito fácil, até parece purgação, remorso, arrependimento, e outras compensações com que Deus nos presenteou porque nos proibiu a imortalidade.   

 

A prova, se prova há em terreno inseguro, a prova documental do que afirmamos seria o programa A Família Trapo, de 1967 a 1971. Para desgraça nossa, no entanto, toda a série, com exceção de raros minutos, sumiu no fogo e no incêndio da TV Record. Poderíamos tentar ainda assim ligar algumas pistas documentais, alguns indícios do que afirmamos, porque ele continuou a representar na televisão, no cinema até este 2005. Melhor não. Melhor evitar esse caminho porque seria injusto para com a verve desse criador lembrá-lo nas últimas representações. O medíocre desses últimos papéis o coração da gente esquece. Melhor vê-lo então sem documento físico, com a força do que ficou em nossa memória.

A Família Trapo era um programa, uma família classe média, que sem Ronald Golias no papel de Bronco seria a coisa mais tediosa que pode haver num aglomerado que se chama família.  A sinopse do programa informa: “As confusões aprontadas pelo malandro Carlos Bronco Dinossauro, cunhado de Pepino Trapo, o patriarca da família. Além de infernizar o cunhado, Bronco infernizava também a vida dos sobrinhos, da irmã e do insólito mordomo Gordon, vivido por Jô Soares”. Este é o resumo. É menos que a sombra de um fantasma. Imaginem agora um indivíduo que não pára em cena, que, ao ouvir falas pacientes é impaciente, pisca sempre os olhos, que torce a boca, que se requebra, dá voltas no palco do teatro. Imaginaram? Imaginaram pouco. Imaginem um homem que modula a voz, que fala num acento caipira do interior de São Paulo, que distorce e cria palavras, corta sílabas, para melhor enfatizar a ignorância do personagem, que não recua diante de nada, de nada, nem diante do mais elementar ato de excreção dos intestinos, ainda que sem perder a elegância, se assim podemos nos referir a um indivíduo que se vestia à semelhança de Cantinflas. Imaginaram? Imaginem agora um ator que em plena representação, em plena fala, sai do palco, some, com as mãos sobre o ventre e avisa: “Vou ali”. E deixa o pobre do coadjuvante sozinho diante da platéia, de um coadjuvante que era também um grande ator, e que por isso comentava com as mãos no nariz, para todo o público: “Ninguém suporta a peste”. Imaginem mais e acompanhem um pouco.
 
Um dos núcleos de comicidade, no roteiro, era o desprezo que Bronco dava ao trabalho, da fuga que mantinha a qualquer tentativa de fazê-lo ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isto no roteiro. Mas era de uma imprevisão simples o que Ronald Golias fazia diante disso. Por exemplo, quando estava absolutamente cercado, quando não possuía argumentos bons, convincentes, para deixar de viver à custa da beleza da irmã, ele, súbito, tinha febre! Dizia, a seu modo, com estremecimentos, e a levantar o paletó sujo até o pescoço: “Que frio, que frio, que friiiio”. E então, para que não morresse o homem, que caía e abria os olhos para o público, a família aceitava que o maldito ocioso voltasse a seu normal. Que era: viver na eterna dependência, com ares de alta classe média ao receber visitantes na casa, e com uma hipersensibilidade, com melindres finos a qualquer leve insinuação de que era um vadio.
 
Claro, nem por isso o conflito primário de que vivia sob o dinheiro do cunhado era resolvido. E por isso brigavam, o italiano que enriquecera no Brasil e o cunhado, que era uma despesa não prevista no casamento do italiano. Brigavam, feio. Então começavam, num crescendo, os insultos. – Pernachia. Parasita!, gritava-lhe o italiano. Ao que voltava Ronald Golias, contra o passado heróico do bom italiano: – Mussolini! Mussulini!, e, insatisfeito, punha-se a cantar em falsete um hino fascista. Então Pepino Trapo se acercava mais do ator à beira da histeria, ambos. E então vinha o que na memória é o ponto alto da imprevisibilidade do artista. O clímax, um orgasmo de apoteose: Ronald Golias caía num ataque apoplético, a debater-se, a babar-se, rolando em convulsões. Ele batia com a cabeça no palco e danava-se a bater no peito com os punhos, como se fosse um macaco no chão. Acredito até hoje que os atores em cena deviam se perguntar, diante da epilepsia, “homem,  será que desta vez é verdade?”.             
 
Aliás, “liás”, como dizia o personagem a cruzar as pernas, mui importante e educadamente, o seu improviso, o que no teatro chamam de “caco”, é um capítulo que torna pálida qualquer tese. Era ver, era sentir, era gozar o elementar da criação. Num tosca frase, deveria ser dito que os seus improvisos eram mais que uma co-autoria, como de resto é todo ato de interpretar. Os seus improvisos eram a própria criação. Isto quer dizer, por um lado, que ele tornava cômico o que no roteiro apenas era risível. Por outro, que ele superava a dificuldade com uma descoberta, com um ser novo. Ora, em nenhum roteiro seria previsto que o ator tivesse disenteria em cena. Em nenhum seria possível prever o embaraço do artista diante do galã famoso, que a cinco centímetros do rosto e da voz do astro, explodisse: – Pára, pára com isso, desse jeito nem eu resisto! Em nenhum deles seria possível o que ele fez com Pelé.  O roteiro, é certo, dispunha que ele ignorasse o nome e o talento do jogador. Mas ele faz um achado, vejam: ele se curva, não para saudar o rei, mas para bater com a cabeça no chão diante da ignorância do Rei. Ele se dobra, homem sábio que é da arte de jogar, porque não suporta mais a estupidez de Pelé diante do futebol.  O idiota que faz papel de gênio, o ignorante que se julga sábio, que não agüenta a grande ignorância em torno de si, e por isto se curva, “irônico”, isto é simplesmente irresistível.
 
Há uma tendência na crítica, aquela que se julga mui genial e culta, a realizar sem que disso saiba o papel do Bronco de Ronald Golias, há uma corrente crítica que vê em Golias um tipo de humor ingênuo. Um quase primitivo. E isto, amigos, é apenas mais uma vitória da arte de representar, a própria reencarnação de que a melhor arte esconde a sua arte. Idiotas, sim, eram os seus últimos papéis. Mas ainda aqui, ainda assim, o velho artista, aos 76 anos não se curvava, não se nivelava à precariedade burra, apesar dos vincos no rosto e da perda ágil dos movimentos. Caía, mas como dizê-lo?, caía no talento, mas sem um ataque apoplético. E que homem é o mesmo quando as energias enfraquecem, quando a luz do seu gênio entra em fade-out?  Agora tentem, respeitáveis críticos, tentem ao menos em sonho algo como o Bronco em 1967, 1968, da Família Trapo. Tentem e verão de que natureza é feito esse humor ingênuo. Um gênio em papel de idiota, um dono do palco, dos atos, do improviso, um mestre da representação. Sem trombetas, a não ser as que mandava soar o idiota Bronco, daquelas que soam nas horas mais impróprias durante uma conversação, de péssimo e imprevisível odor.

 

A lembrança que nos vem de Golias, nessa hora em que parte, no dia dos santos Cosme e Damião, mistura-se com a nossa própria vida quando se anunciava 1968. Todos adolescentes amigos também vivíamos uma comédia, que para nós à época mais se assemelhava a um drama. Talvez por isso todos fôssemos possuídos pelo desejo imenso de rir, de sorrir. Todos os sábados, uma hora por semana de felicidade.  

Urariano Mota

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