Simplicíssimo

A literatura que é farsa (Final)

Baudelaire, reprima o vômito

Nota-se que a criação, a literatura, transformou-se em acidente. A verdade que ela expressa, a imensa e insuperável verdade que ela nos ensina, transformou-se em fato, em fato acontecido tal qual se deu. Substituíram a verdade por um boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia. Substituíram-se o sentimento e a inteligência pela pura biografia, supondo-se, claro, que uma biografia seja um retrato fiel quando vista e reconstruída em diferentes memórias. Para essa nova realidade, quando eu digo, se eu disser, “naquela tarde eu fui expulso de um navio no cais como um cão”, a verdade que a narração contiver para essa frase receberá as indagações, “Em que tarde? Em que dia? Você recebeu mesmo um pontapé no traseiro? Foi com força, você caiu? Como você prova?”. Se eu disser, quando eu disser, que o trabalho de bancário para um escritor é um câncer, isto somente receberá valor estético se contiver o meu atestado de óbito, com a localização precisa e insofismável do meu túmulo.

Ora, esse acanalhamento da expressão humana, essa redução da verdade ao particular biográfico, resulta numa imensa pornografia, num escândalo buscado e forçado por meios e pelos meios mais artificiais. Resulta numa imensa falsidade. Se um escritor disser, por exemplo, que é um travesti em um livro, isto somente receberá valor se ele realmente ficar a se oferecer a outros homens  nas avenidas, e, portanto, mais valor terá o seu livro se comprovar que assim contraiu o mal da Aids, e tiver fotografias e cartas precisas de um burguês que ia com ele à cama.  Este é o valor do seu livro. A literatura ganhou o valor da pornografia como espetáculo. E dizemos pornografia na falta de termo mais eloqüente, dizemos pornografia sem pensar na grandeza do marquês de Sade, queremos dizer, quando dizemos pornografia, aquilo que se refere apenas ao bárbaro, à barbárie, a, achei a sua expressão, à sodomia e humilhação feita em cima de presos árabes! É o reino do insulto, da degradação. Quanto mais degradado, mais verdadeiro. Daí que o escritor de gênio é aquele que se drogou desde os 12 anos. Daí que o novelista de brilho é o que foi vendido como prostituto, e que envia aos repórteres colares de pênis. Baudelaire, reprima o vômito.

Nesses dois casos apontados, sem invenção, nesses dois casos really verdadeiros, factuais em toda sua brutalidade, nota-se que a descoberta da fraude não se deu a partir da crítica à obra mesma. Assim como ela veio e se valorizou por motivos exteriores, por motivos exteriores o seu véu de transcendência se desfez. Quantos casos e valorizações degradantes pululam neste exato momento em todo o mundo das artes e do espetáculo? Então vivemos a época da fraude, do roubo à sensibilidade e à inteligência? Então vivemos sob os meios mais cínicos de propaganda e publicidade do que é falso? O leitor já vê que fazemos perguntas cuja resposta é um óbvio sim. É como se vivêssemos em um mundo de valores entre aspas. Em lugar da beleza, do amor, do ódio, da criação, passamos ao mundo da “beleza”, do “amor”, do “ódio”, da “criação”. Vivemos e entramos no próprio “mundo”. Baudelaire, envie-nos por favor o seu tsunami.         

Aquele verso de Pessoa, de o poeta ser um fingidor a fingir até mesmo a dor que deveras sente, que tantas vezes é mal traduzido para justificar uma fuga à verdade, como se houvesse criação que não fosse a busca mais dura para extrair a verdade, somente a verdade, esse verso de Pessoa ganhou uma nova versão: finge-se que é verdade o que não é. Antes, e em todo escritor de valor para todo o sempre, fingia-se mentir para melhor falar a verdade. Agora finge-se dizer o factual, um fui puta, fui puto, vejam o meu diário, sou a puta que a imprensa falou. A minha secreção impressa é a verdade. Que diferença, lembramo-nos, que diferença para a negra Dorotéia, aquela que “caminha, balançando com indolência o torso tão fino sobre as ancas tão largas… admirada e mimada por todos, seria de todo feliz se não fosse obrigada a juntar piastra por piastra para resgatar sua irmãzinha, que tem precisamente onze anos e já está madura, e tão linda! Ela o conseguirá, sem dúvida, a bela Dorotéia: o senhor da menina é tão avarento, tão avarento, que não compreende outra beleza a não ser a dos escudos!”. Que diferença, Baudelaire. Isto até hoje nos vem como um tsunami.

Urariano Mota

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