Com um título assim, logo nos lembramos de Franz Kafka, no conto Um Artista da Fome. Como se andasse pelo Recife, ele nos diz:
“Nas últimas décadas o interesse por artistas da fome diminuiu bastante. Se antes era compensador promover, por conta própria, grandes exibições desse gênero, hoje isso é completamente impossível…”.
Mas as semelhanças param já a esta altura. Pois a narração em Kafka vai crescer para um determinado artista, o faquir. E, entre nós, no Recife, o gênero de artistas da fome é outro.
Aqui, no artista das ruas, a fome se oferece como uma bonificação. Algo assim como “vejam a sua habilidade, e ganhem de quebra os seus ossos”. São palhaços, malabaristas de circo sem lona, que se exibem nos largos públicos, sem camisa, descalços, verdadeiros artistas recusados no picadeiro.
Na praça do Carmo, há um mês, havia um desse gênero. Cafuringa, mulato alto, misto de empresário e apresentador, que não há muito houvera sido ventríloquo de seu Benedito, um boneco negro, com certeza seu parente, porque quase tão feio e abusado quanto o seu dono, Cafuringa, o ex-animador do seu Benedito, dessa vez implorava, com um microfone, para a sua nova cria:
– Cidadões, meus senhores….Vamo colaborar, vamo colaborar, minha gente. Quem dá 1 real, para o show do artista? Vamo lá, gente…
Silêncio, a multidão sem movimento espera, em paciente resistência. Cafuringa volta:
– Vá lá: 50 centavos, quem dá? Assim num dá. Assim num tem espetáculo. Num dá nem pra pagar a bateria que eu aluguei pra esse microfone. (Silêncio) Vamo. Se cada um der 10 centavos, o espetáculo começa. Olhem o home.
No centro da arena, ou da roda formada na praça, eis o homem: um jovem magro, que a gente percebe que é magro por falta de substâncias mais sólidas, pois o seu natural, por esqueleto, não é ser raquítico, no centro da arena está um jovem grunhindo, fazendo comicidade, no seu entender, pois grunhe e contorce-se com ar gaiato, todo amarrado por cordas.
– Ói, ói, tá doendo. Que nó arretado.
E remexe-se, dançando nos quartos. A pele do seu peito, dos seus braços, do seu ventre teso, é um couro sujo, cor de cobre tostado, de moeda de um tostão.
– Tá doendo, ói, ói… – E dança nos quartos.
Cafuringa conta as moedas: setenta e cinco centavos. Moedas arrecadadas num ajuntamento de cerca de trinta pessoas. E explode:
– Assim num dá.
E desliga o microfone. O artista pára de rebolar, e toma um ar falsamente triste, de palhaço sem máscara, como se representasse um Cristo molambo, de drama de camelô. Ele não tem olhos, está cabisbaixo, tem só um cabelo grosso, quase da cor do couro da sua pele, num amarelo que perdeu a luz porque ganhou tons toneladas de sujeira. Cafuringa, no segundo ato do drama, como se apiedado de sua cria, volta:
– Se completarem 1 real, tem espetáculo. Tão vendo não? Ele vai se soltar sozinho dessas cordas. (“Tá doendo, assim é covardia”, faz-lhe coro o artista).
O chapéu passa mais uma vez. Completam pouco mais que 1 real. E acontece o assombro: agitando-se nos braços, que mantinha a certa distância do peito, a Oitava Maravilha de nossa pobre esperteza desvencilha-se das cordas, urrando. Nem um só chocho aplauso o recompensa. Mas, consideremos, se além de ganhar o seu real, o artista ainda fosse aplaudido, aí também já era covardia.
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