O ilustre senhor Paulo Carneiro chegou esta semana ao Recife. “Chegou” é maneira de dizer. “Apareceu”, “desceu de uma nave”, ou “saltou das páginas de um livro”, seria mais próprio. Agora mesmo, enquanto escrevo “Paulo Carneiro”, os dedos das mãos desobedecem à voz do cérebro. Enquanto escrevo, o cérebro diz, exige que eu escreva “Capitão”, Capitão, Capitão. E o cérebro, embora cérebro, tem lá suas razões. Que começam pelo elementar: a pessoa do senhor Paulo Carneiro, a sua fala, os seus atos não aceitam esse nome do registro de nascimento. Tentemos, portanto, ficar em paz com o cérebro.
Para quem não o conhece, a primeira coisa que tem a fazer é não confundi-lo com o corpo que o veste. O Capitão é um indivíduo extremamente feio … mas que digo? Sobre a sua beleza eu deveria calar. Porque certa vez, na Universidade de São Paulo, ele me emprestou a sua carteira de estudante para que eu jantasse no restaurante da universidade. Quando lhe objetei que eu seria barrado, porque o porteiro notaria que as nossas caras não se confundiam, ele, o Capitão, me respondeu de imediato:
– Fique tranqüilo. O porteiro não vai notar. Você é tão feio quanto eu.
E eu jantei! Então, então eu quero dizer que de um ponto de vista estético o Capitão é um indivíduo bem característico, se isto quer dizer alguma coisa. O seu corpo parece ter sido esculpido por um escultor cubista, acrescento. Ou melhor, se substituirmos as linhas duras, retas, cheias de ângulos agudos dos cubistas, se retirarmos a harmonia, o efeito de composição que preside uma obra cubista, o leitor alcançará o que eu quero dizer. Mas isto se o leitor for um inteligente extraordinário, um paranormal vidente, agora percebo. Porque escrevi “se substituirmos as linhas duras, retas… se retirarmos a harmonia…”, e nada lhes deixei no lugar. Então eu digo, bem racionalmente: se substituirmos as linhas retas por curvas, mas com um queixo à feição de um paralelepípedo, se reunirmos As Donzelas d’Avignon em um só corpo de um vegetal que se assemelhasse a um cilindro, e se a este cilindro impusermos um movimento sem rodinhas na base, cilindro que se movesse como que tocado pelo vento do acaso, porque não pareceria ir-se guiado por força humana, então o leitor saberá o que quero dizer. Agora imagino ter sido claro. O que digo? Releio e vejo que substituí uma sombra por outras mais consistentes.
Como diriam os gringos diante de um obstáculo, Well. So, deixemos a apresentação física de lado. Porque esse indivíduo que o coletivo da graça deu o apodo de Capitão somente é capturado quando ouvimos a sua inteligência. E se assim é, o leitor que nos acompanhe. Aproveite a presença do Capitão no Recife esta semana, porque passo a relatar a entrevista, a conversa que tivemos no bar 28. Eu, ele e Paulo César Fradique.
– Capitão, primeiro, como você ganhou esse nome?
– Então. Como todo jovem na década de 70, que não sabia o que fazer na vida, eu parti para estudar Direito. Na faculdade, entre uma aula e outra, reunia-se um pequeno grupo de estudantes, que se punha o declarar o que lera, ou que acabara de ler. Um grupo muito fino. Dizia um: “Proust. Que maravilha é ler Proust. De uma assentada só você lê um volume inteiro, é empolgante”. E eu calado. Aí dizia outro: “Pra mim, o autor é Joyce. Os recursos que ele usa de linguagem, as inversões semânticas…”. E eu só assistindo, em silêncio. Até que um deles virou-se pra mim, e perguntou: “E você, já leu o quê?”. Aí eu respondi, diante daquela sofisticação: “Eu? Eu só leio o Capitão América”. E passei a narrar a genealogia do herói. E virei Capitão.
Paulo César, que é jornalista como o Capitão, quer saber as aventuras do super-herói em São Paulo. A luta dele contra o Mal na grande imprensa. O Capitão é um ser muito interessante, porque a esse pedido de Paulo César, passa a contar os desastres, deste narrador que lhes fala. Como se eu não estivesse presente.
– Esse rapaz sempre teve o defeito de falar a verdade. (E virando-se para mim: – Você mudou?) Pois bem. A revista Istoé, quando estava nascendo, encomendou a ele uma reportagem sobre a Literatura Negra, um movimento que também estava nascendo em São Paulo. Que faz ele? Em vez de aumentar a bolha, de divulgar a novidade para o Brasil, imprensa, você sabe, é assim, “news”… que faz ele? Escreve um artigo, como se fosse um ensaio, citando Hegel e outros papas. E dizia, lá pras tantas: “Não existe arte negra, arte esquimó, arte índia. Arte é simplesmente arte, ou não é… esses escritores que pretendem fazer uma arte negra são de imensa disfarçatez”. Ao ler a cópia, eu observei que ele cometera um erro de ortografia: a palavra não é disfarçatez, com I e R; a palavra é desfaçatez. “Cadê?”, ele me disse. “Vamos ao dicionário”. Fomos. Em nenhuma página existia disfarçatez, é evidente. Mas ele não se deu por vencido. “Isso veio mesmo a calhar, Capitão. É um gênio que temos interno, conspirando em silêncio. Esses jovens escritores são uns falsos negros. Veja que disfarçatez quer dizer, ‘disfarça a tez’. Eu não errei. Isto é um neologismo”. Resultado, a matéria não foi publicada, mas o meu amigo recebeu o salário da história.
Eu acho, particularmente, que o Capitão vive num mundo de espelhos. Esta é a minha única explicação para essa história. Lembro-me da matéria abortada para a revista Istoé, lembro-me do artigo até alguma referência a Hegel. Lembro-me, talvez, é forçoso, não vou disfarçar, até do erro ortográfico. Mas a saída do erro, a maneira com que a frase está arranjada, só me faz concluir que essa história aconteceu foi com o Capitão. Assim digo porque ele me joga em outra aventura, do super-herói cuja maior aventura é a sobrevivência.
– Esse rapaz teve a oportunidade de ganhar um freelance pra uma revista feminina, dessas de arte e madame. Era para cobrir a exposição de um pintor chileno. Tudo ia muito bem até o ponto em que, já no fim da entrevista, ele disse ao pintor: – “Você se parece com duas pessoas. Uma é o poeta Pablo Neruda”. O pintor ficou muito feliz. “E a outra?”, perguntou. “Deixa pra lá, esqueça”, o meu amigo respondeu. O pintor insistiu: “Por favor, diga. Eu não me ofendo. Isso de parecer é tonteria”. Então o amigo soltou o que lhe estava a coçar na garganta: – “A outra é o comediante, o palhaço Costinha”. O pintor ligou para a revista e esqueceu a parte de Pablo Neruda. Pediu a cabeça do repórter.
Eu não me lembro bem disto. A melhor explicação que tenho é que nesses relatos o amigo, sem deixar a sala dos espelhos, desenvolve com arte múltiplas possibilidades. Possibilidades que ele conhece muito serem nossas. Daí que o bruxo nos confunde. Daí que eu não sei se Gildo Marçal, um amigo do largo peito do Capitão, se reconhece no que segue.
– Nesse fim de ano eu mandei uma mensagem de boas festas pra Gildo. Mensagem bem convencional, daquelas que a gente pode retirar do arquivo todos os anos, mudando só a data. Eu acho que Gildo não gostou muito. Sabem por quê? Primeiro porque… – nessa altura o Capitão muda a voz, baixa os olhos como um médium de centro espírita, e dá uma entonação e sintaxe que ele imagina para o seu personagem – “Ó Capitão, que é isso? Você me manda uns votos de felicidade individual, como se dependesse apenas de mim um feliz 2004…” Segundo porque, lá pro dia 4 de janeiro, recebo uma mail dele, desejando-me um feliz ano novo. Havia até um certo ar de desculpa, por estar mandando atrasado. Minha resposta: “Você não se atrasou, meu amigo. Pelo contrário. Desejar feliz ano novo, depois de 2004 haver começado, é desejar muito adiantado um feliz 2005”.
E continua, depois da necessária pausa:
– Mas ele fez isso por gentileza. A sua competência intelectual não lhe tira a educação da convivência. Eu estava escrevendo um artigo, e lá pras tantas, senti a necessidade de fazer uma citação de Engels. Era aquela em que ele diz que a História produz gigantes quando precisa. E assim teria sido no Renascimento, com Maquiavel, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci … mas não me lembrava exatamente das palavras, da obra. Ligo pra Gildo. E ele (voz de Gildo): “Ó Capitão, isso é da Dialética da Natureza. Na edição da Paz e Terra, está na página 147”. Dito e feito. Estava lá, da forma e no conteúdo como Gildo me disse. Só não contei pra ele que eu precisava da citação de Engels pra concluir: “se cada época produz os gigantes de que precisa, a nossa, no Brasil, é a dos gigantes Fernando Henrique, Palocci, José Dirceu…”. Com o apoio de Gildo estou tranqüilo. Eu jamais cometerei o erro de um editorial de um diário recifense, que dizia, “segundo Ortega y Gasset, esses dois grandes escritores espanhóis…”.
No momento em que escrevo, já passa das doze horas de sábado. Jesús não mais pode esperar. Em resumo, digo: meus amigos, este é o Capitão.
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