Simplicíssimo

Os 84 anos de Dona Maria

Nas informações de propaganda, o edifício Califórnia é uma referência da praia de Boa Viagem. À sua frente, mar de águas mornas, palmeiras, coqueiros,  atraente e urbanizada orla, palhoças que vendem coco verde e áreas de lazer. Quando nasceu, o Califórnia era uma jóia da arquitetura recifense, no que se convencionou chamar de arquitetura moderna. Depois, por razões que até hoje não se tornaram públicas, dizia-se que ali moravam prostitutas para a elite, algo assim como uma prostituição entre iguais, comentava-se que virou residência de homossexuais segregados, e por força da vizinhança entre sangue e discriminação, veio a se tornar fonte para o noticiário de crimes. Com as vítimas de sempre, prostitutas e homossexuais, assassinados pelos prostitutos e homossexuais que a sociedade considera mais dignos e diferentes.  

 

O Califórnia de hoje não é o mesmo de antigamente, da época da sua má fama. Fizeram-lhe uma assepsia, dizem os novos moradores. Hoje ali moram famílias, dizem, famílias que podem pagar 300 dólares de aluguel por um kitchenette. Câmeras perscrutam e varrem o hall, os corredores, para que, talvez, não mais ocorram bárbaros crimes, como o de Boni,  apunhalado mais de 30 vezes, em razão de infidelidade ou de não ter pago o preço do amante. No entanto, é da história, é da feição das moradias, a sobrevivência do caráter do que foram, ainda que mudado. Poderíamos até mesmo dizer que nas casas, nas moradias dos homens há uma prova indireta de teorias espíritas, porque nelas resiste um modo de ser dos antigos habitantes. Ou dizendo de outra maneira, o que vemos agora não nasceu hoje. É sempre luz, filho ou sombra de uma vida que continua de outra maneira.      

 

 

A curta narração que passo a contar nos foi contada na mesa de um bar, antes do jogo Brasil e Croácia, como uma coisa menor, passageira, antes da grande estréia da seleção brasileira, como se fosse hors-d’oeuvre, um salgadinho que antecedesse a refeição principal. Passado o jogo e a grande estréia, a história resistiu, bem maior que o selecionado dos sonhos. Assim como na vida, o principal às vezes vem antes, e não notamos.

 

 

O caso de Dona Maria e sua festa de aniversário bem poderia encerrar, inaugurar uma lição de humanidade, se fosse escrita por mãos mais hábeis. Poderia virar um filme de Almodóvar, se o diretor espanhol renunciasse ao proselitismo. A pessoa de Dona Maria, que recebe o “dona” com maiúscula porque ainda é uma grande dama, é uma das mais antigas moradoras do edifício Califórnia. Quem a vê, quem a viu, assim me garantiram, é incapaz de não cair sob o seu fascínio, mas um fascínio distante, diverso dos tempos em que era prostituta. Puta teúda e manteúda, o homem ou os homens a quem se entregou não a deixaram na miséria ao fim. Ela é dona do quitinete onde mora, à beira-mar. Vive da pensão de quem a manteve nos dias de esplendor. Deveria ser mulher de grande valia, em mais de um sentido.

 

 

Dizíamos que Dona Maria preserva um fascínio diferente, porque na sua queda, quando mergulhou na solidão, ela continua a fascinar todos os sexos, independentemente de sexo e de sexos. Blue gardenia, na voz de Nat King Cole.

 

 

Blue Gardenia
Now blue I'm alone with you
And I am oh so blue
She has tossed us aside
And like you, gardenia
Once I was near her heart
After the teardrops start
Where are teardrops to hide

I lived for an hour
What more can I tell
Love bloomed like a flower
Then the petals fell
Blue gardenia
 

 

Dona Maria é cuidada, penteada, lavada e medicada hoje por um casal de homens. José e Jeová, a quem chamaremos assim, em respeito à liturgia do nome da única mulher a quem se devotam, têm os ofícios de advogado e de enfermeiro. Jeová cuida dos assuntos mais altos, dos papéis, documentos e males gerais da vida exterior, pública, de Dona Maria.   José, da sua vida mais privada, pois lhe dá remédios, arruma, lava e espana os móveis, e tem uma paciência infinda em tratar da erisipela, que hoje teima em marcar a mulher, a “ex-prostituta”, como corre na boca dos mais virtuosos do Califórnia. “Ex” pelo que é, pela idade em que se encontra. Prostituta pelo que foi, pelo que jamais deixará de ser, mesmo na sua idade. É a sua marca.

 

 

– Eles vivem à custa do dinheiro dela?,  perguntam na mesa.

 

– Não, eles têm seu próprio apartamento. Os meninos…

 

– Os meninos?

 

– Sim, o casal gay. A gente chama “os meninos”… Eles se interessaram por ela de graça. Tomam conta dela como se fosse a própria mãe.

 

– O que eles fazem?

 

– Ah, o enfermeiro leva ela na cadeira de rodas, passeia com ela na praia,  arruma a casa, cozinha, dá banho nela….

 

 

Alguém observa, em tom elogioso, que um cuidado assim, tão desinteressado, somente poderia ocorrer a um gay. E dizendo isso, quer apenas dizer que não tem preconceitos, porque acrescenta que o enfermeiro é a filha e o filho ideais numa só pessoa. Lava, engoma, arruma e dá remédios. Quem mais cuidaria de uma mulher, dessa maneira, com tamanha competência? Outro na mesa, de forma ainda mais elogiosa, afirma que somente um gay poderia despir, dar banho em uma mulher. E com um tom cínico, declara:

 

 

– Ele pode dizer para ela, “abra as pernas”, sem nada sentir.

 

 

O morador do Califórnia, que conta o caso, a isto não responde. Ele olha de lado, como se procurasse algo mais concreto além da mesa, em outro lugar, em outra terra, que expressasse um sentimento. Algo como, por que dividir assim a humanidade? Por que não ver nesse carinho a expressão de uma esperança? Por que não ver nisto algo tão simples quanto um afeto, afeto sem adjetivo, afeto, afeto, simplesmente? As pessoas na mesa riem diante do “abra as pernas”, mas o contador da história, não. E sem erguer a voz, como se as palavras fossem levadas pelo vento e não se pudessem mais ouvir, na balbúrdia, na confusão que antecede a grande estréia do Brasil, enquanto os carros buzinam, o samba e o frevo tocam,  ele diz:

 

 

– Eu achei lindo…. a festa dos 84 anos de Dona Maria foi linda.

 

 

Então por impulso, entre um trago e outro de cerveja, ele conta a todos e a quase ninguém que os meninos fizeram uma decoração linda, que um convidado trouxe um violão e tocou para Dona Maria coisas lindas, boleros lindos, valsas lindas, que vieram pessoas de várias procedências, estilos e tempos, todos lindos. Quem?

 

– Travestis, um casal, senhoras idosas também, aquelas amigas do tempo de Dona Maria, da batalha. Senhores sozinhos, das antigas. Teve bolo, presentes, doces. Tudo a que Dona Maria tem direito.     

 

– Você levou algum presente pra ela?

– Claro. Quando os meninos puseram o cartãozinho do convite debaixo da porta, eu me disse, “eu não posso faltar”. Procurei e levei para ela um buquê de flores. Ela se emocionou tanto … ela agarrou as flores contra o peito, lindo.   

   

Então lhe perguntam que flores, e antes que responda ocorre a possibilidade de que ele  tenha dado de regalo rosas vermelhas. Talvez red roses for a blue lady. Ou, quem sabe, gardênias, blue gardênias, para a senhora cujo amor florescera um dia. Não, não foram nem eram gardênias. Dona Maria estreitou contra o peito flores do campo. Belas, verdadeiras, simples flores do campo, como o afeto que ganhou ao fim, afeto que não merece qualquer qualificação, afeto para o qual é um insulto qualquer adjetivo. Um animal diria que, cobrindo o peito assim, Dona Maria ocultava dos convidados os seios fenecidos. Para nossa felicidade, o animal saiu. Para nossa felicidade, ele não viu que Dona Maria era as próprias flores do campo. Não sei se os leitores concordam, mas ela e tudo nela  ficou lindo.   

Urariano Mota

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