Simplicíssimo

Aurora (IX)

IX

– Meditas enquanto é tempo, já que teu espírito não é mais livre

Enquanto alguns riachos dormiam absortos, durante vários dias, escuros, outros sombrios, mas sempre todos silenciosos, naquela primavera, passávamos sozinhos por regiões opressoramente monótonas, onde as noites se estediam melancólicas, singulares, e como uma sombra, um sentimento de insuportável perda me invadiu o espírito. Um sentimento árido que contrastava com a umidade silvestre que nos rodeava, mas igualmente frio como os rios e as noites, revestido daquilo que chamaria de ‘severidade da desolação e do terrível’, sem qualquer comoção poética ou agradável que poderia gerar, ou ser gerada por tal estado de espírito. Por fim, o paradeiro de meu pai, embora ainda incerto, não era um mistério de todo insolúvel, mas não poderia lutar contra as temerosas visões que se esgueiravam em minha imaginação enquanto refletia sobre os perigos que teríamos pela frente. Porém, sou obrigado a reconhecer que aquela peculiar sensibilidade aos infortúnios das regiões pelas quais passávamos me foi revelada (pois, agora, chego a tal conclusão claramente) como consequência dos efeitos da flor de Goldoni. Percebo, insatisfatoriamente, que existem, por mais simples que sejam, combinações naturais que afetam nossa compreensão e ânimo de forma que a única impressão dolorosa que nos resta é nada mais, senão o pânico. E foi sob os efeitos daquela síndrome provocada pelo singular vegetal corsense (fonte de um vício que, confesso, carrego até estes dias) que percorri os caminhos seguintes que estendiam seus brilhos até as montanhas cinzentas e troncos fantasmagóricos e lôbregos.

A flor cor de limão me conduzira àquela síndrome, e minha tez se tornou cadavérica, os olhos engrandeceram e se tornaram por demais transparentes e com luminosidade sem comparação e aterrou-me uma palidez espectral. Mesmo com esforço, pouco é possível relacionar tal expressão arabesca à qualquer idéia de comum, de natural, de simplicidade ou até mesmo de vida. A perturbação mental excessiva causa uma concisão energética, pesada e oca, mas alternadamente inebriante, fruto responsável pelo caráter viciante do odor daquele vegetal. Há também uma conformação física, mudança de temperamento e agitação nervosa, e surge então uma agudeza mórbida dos sentidos: as vestimentas se tornam insuportáveis em seu peso, o cheiro se torna grotesco, as luzes mais fracas cegam, torturam os olhos e os gostos dos alimentos ficam como podres; tudo parece causar horror sob os efeitos da síndrome da flor, porém, naquele estado tardiamente provocado, a memória em nada é afetada em sua condição, pelo contrário, parece se tornar tão mais aguda quanto os sentidos, como se o fantasma horrendo do medo não pudesse se dissolver nem mesmo no esquecimento dos viciados. Foi nesta espécie anômala de terror que passei a perceber o mundo por um afortunadamente curto espaço de tempo, mas não posso deixar de citar o que via nestes momentos pois, por mais mórbidas que pareçam tais constatações, nada era enganoso, mas sim a natureza parecia deixar de ser fonte de equívocos para, ao menos, insinuar sua real condição, e então passei a ver o mundo em seu próprio e verdadeiro espírito, resultado da desfaçatez mais imprudente do próprio mundo, sem a deformação das impressões e sentimentos humanos que distorcem e escondem as propensões demoníacas dos cenários nos quais vivemos.

Os pássaros não eram como os pássaros, e seus cantos eram inacreditavelmente agudos e altos, ferozes; e voavam como que dentro de pequenos círculos alinhados perfeitamente às suas dimensões animais, batendo as asas de forma a tangenciar o perímetro circular. As ondas sonoras, constantes emanações de todos os objetos animados e inanimados, eram visíveis como os raios solares, retilíneos e paralelos, e se difundiam entre toda a matéria, ricocheteando de canto a canto até perderem sua força para desaparecer no invisível. Era possível ver uma multidão daquilo que me pareceu ser a seiva das árvores, mas dentro dos troncos e fluindo para baixo da terra através das raízes. Mas certamente a insensatez que se impõe até mesmo aos espíritos mais céticos e fleumáticos é a maneira como, neste delírio, pude ver, ou melhor, os animais pareceram me ver, pois seus olhos ganharam uma profundidade impressionante, fogosas qualidades, me fazendo recuar e empalidecer mais ainda frente às expresões das raposas, dos esquilos, dos próprios pássaros e de nossos cavalos que se tornavam, de tão penetrantes, quase humanas, a ponto de seus focinhos e bicos e penugens e asas e patas se deformarem em todos os seus músculos para se tornarem naquilo que a eles mais se assemelharia a imagem de um ser humano. Percebendo meu estado, a mulher me olhara com preocupação, mas ciente do que me causava aquelas inquietações, ela se deteve. Como disse, os efeitos da flor corsense eram tardios e rápidos, e logo pude me recuperar de tais delírios, enquanto começávamos a percorrer os labirintos de uma planície enevoada. Entrecortamos as esparsas árvores até que avistei as estranhas casas e estábulos dos peregrinos, dos quais finas lâminas de fumaça nasciam e riscavam o azul renitente do céu nublado. “- Vês a arquitetura destas casas, caríssimo?” – a mulher disse com seu fraco e acolhedor fio de voz. “- Não vejo nada além daquilo que já tenha visto.” – respondi enquanto ajustava a visão na névoa, focalizando as construções rústicas a nossa frente. “- Ora, asseguro que nunca vistes algo mais perfeito que isto. Vês a posição do sol.” – ela me dizia protegendo os olhos, olhando para cima e descrevendo com o indicador uma trajetória imperfeita até o horizonte. Pela posição dos raios solares àquela hora do dia, concluimos que a disposição de cada porta das casas se abria perfeitamente para o Oriente, e mais tarde, analisando os tratados e mapas em minha velhice, estudos periódicos sobre as construções peregrinas descreviam a ordenação de suas arquiteturas para Jerusalém, terra do Salvador. Embora, durante anos, tenha passado por inúmeros lugarejos de fiéis, nunca vira tamanha perfeição e devoção como a das construções peregrinas que, quando não se voltavam para o Oriente, impossibilitadas por algum acidente natural, apontavam diretamente para alguma construção abacial ou igreja de devotos da mesma ordem. “- A arquitetura, meu caro, é entre todas as artes tradicionais a que mais pertinentemente tenta reproduzir em seus adornos, em suas colunas, em seus níveis e desníveis, em seus detalhes e até mesmo em seus afrescos o ritmo e a ordenação universal. É capaz de causar inquietação e espanto como um grande e uniforme animal que, concebido à luz divina, possui a perfeita proporção entre todos os seus membros. Como disse São Sebastião em seu martírio final nas paisagens do vale do Arno, sejam dadas graças ao Criador que tudo criou em ordem de Qualidade, Quantidade, Densidade, Volume e Proporção.”

“- Mas não te parecem grandes heresias tais afirmações? ” – lhe perguntei irrepreensível e percebendo a consternação dela, continuei: “- Como poderíamos conceber o mundo como o retrato de perfeitas e exatas interações entre todas as partes que o constituem, se os milagres da santidade dos santos, a cura da loucura dos loucos, a fé dos crentes, tudo parece amarrar-se em constatações que fogem ao entendimento mundano e somente podem ser aceitas pelas paixões digressas nos mais pios corações iluminados pela fé?” “- Se a ordem de tudo se define apenas em pesos, medidas e números, em nada haveria a fonte da matéria animada, pois o arranjo é perfeito e exato, mas a vida reside na alma, a substância dos corpos, os invisíveis cordéis que nos movimentam, e a tudo faz caminhar por este palco de saborosas mentiras, como as marionetes do teatro corsense.” – e ela olhava dispersa para os vales a nossa volta, como se visse as montanhas feitas de papel, as árvores erguidas de lantejoulas e os rios de panos finos e azuis que flamejavam ao vento. “- Então, se é na alma que reside a vida, e a vida é dada somente por Deus, é na alma também que residem nossas limitações de pecadores, pois o conjunto inaminado que nos dá a imagem terrena não poderia pecar se inanimado é. Desta feita, o pecado nos é dado pelo próprio criador, e somente a ele podemos recorrer por um mal que nos foi dado por ele próprio.” – arrisquei-me nesta constatação, que embora pouco virtuosa, não inibiu uma resposta. “- Te esqueces de nosso livre arbítrio.” – e ao ouvir isso, já planejava a retórica. “- Mas por que, então, nascemos manchados pelo pecado original? Estamos, à gênese da vida, condenados à morte?” “- Tens medo da morte?” – ela inquiriu. “- Preocupo-me como as coisas parecem seguir uma ordem oculta, que embora dita divina, nos é fonte de incompreensão.” “- E tens medo disso?” – seu tom de voz foi mais baixo, quase um sussurro, mas ainda audível e claramente perverso. “- Sim, tenho medo.” – respondi evitando seu olhar. “- Então és um crente, e temes a Deus para tua salvação. Se transformas em operações do intelecto aquilo que deve ser concebido no ventre da fé crstã, então não vês necessidade de temer e esperas de bom gardo a epifania do mundo ao avesso. Como disse Aristóteles, o homem é o único ser capaz de rir porque apenas ele é dotado de um caráter reflexivo lógico e racional sobre os mistérios de sua própria criação; e, se ris, perdes a necessidade do medo, aceitas a morte com a liberação do medo da própria morte; e a vida, antes tida como o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos, se torna causa e cenário da representação de nossas fraquezas, vícios e defeitos e, movida por tais signos de nosso caráter, desejaria, ao seu fim, nada mais senão a própria morte, e nunca a redenção.” “- E perde-se a necessidade de Deus.” – constatei impudico. “- Perde-se a necessidade de viver. Somos pó, caríssimo, e ao pó voltaremos.”

“- Mas, por fim, acreditas em alguma ordem natural das coisas do mundo?” – e quando lhe perguntei isso, percebi que ela já aguardava que dissesse aquilo. “- Duvido que o mundo possua ou siga uma ordem, mas consola-me perceber que, senão uma ordem, o mundo segue algumas conexões, que por vezes são pequenas, outras, grandes, mas sempre conexões de caráter essencial à vida. Sem isso, existiria apenas o acaso e o ocaso.” “- E se assim for?” – o frio aumentava e eu já desistia daquela conversa. “- Se o acaso gera a vida, então o infinito possuiria infinitos mundos, gêneses de encontros casuais de toda a matéria.” “- E cada um destes mundos possuiria, por sua vez, seu próprio Deus?” “- Se há infinitos mundos, são infinitos tanto no espaço como no tempo, sendo, desta feita, além de infinitos, eternos mundos, pois nunca hão de desaparecer.” “- E, se são eternos, não há necessidade de sua criação, e nem de salvação ao seu fim, visto que ambos não existem. Será então inútil conceber a idéia de Deus.” “- Caríssimo, não blasfemes.” – e este seu conselho possuía um ar de lacônica ironia. “- Venhas, menino, vou te ensinar que estas flores que pegastes na estufa do mudo servem para algo melhor que alucinações tardias e passageiras.” “- Para que mais serviriam?” – pensei cansado, enquanto procurava por minhas provisões daquele vegetal. “- Pesca.” – ela respondeu, como que adivinhando meus pensamentos. Paramos às margens de um riacho de águas escuras. A mudança de assunto me trouxe novo ânimo, e a ajudei quando começou a macerar algumas flores para depois jogá-las na água. Os peixes, mortos, começaram a emergir.

Rodrigo Monzani

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