Simplicíssimo

Aurora (VIII)

VIII

– Pensas que é no mundo, mas é dentro de ti que a natureza floresce

Era o fim da noite, e quando ainda procurava uma explicação para os vasos e caniços que escondiam o reflexo de algumas portinholas de vidro num dos becos da aldeia corsense, descobri, através de uma solitária lâmina de sol, aquilo que mais me pareceu a dança de infinitos corpúsculos que se difundiam na escuridão de uma estranha construção murada que lembrava os arcos góticos de uma catedral. Caminhara durante quase toda noite, solitário e insone, e a aurora começara a brilhar, dissolvendo a natureza em cascatas de luzes, entre gotas da chuva noturna e perfumes florais que fervilhavam no vazio. Compreendi, então, a função dos vasos: havia, criado naquela região soturna da aldeia, um jardim coberto, flores, arbustos, pequenas árvores, espólios silvestres, uma grande natureza esmeraldina repleta de pequeninos rubis que, à contraluz, brilhavam me conduzindo a odoríferos delírios. Entrei naquela pequena catedral de luz em meio a escuridão e dei de encontro com recipientes de vidro em diversos formados, decrescentes, cheios de água e alinhados de forma a margear um caminho de tijolos arredondados. Meu olhar se fixou numa planta cor de marfim, cujo formato lembrava a cauda de um tubarão e dela brotavam flores róseas e lírios e outras ainda de arquitetura carnosa e enrodilhadas em forma de concha, guardando a água que, percebi, escorria até os recipientes da entrada através de ductos espiralados e finos. Agitei uma flor grossa que brotava entre os tijolos que percorria, ouvindo o som de sementes bailarinas dentro do caule, como se aquilo não fosse um vegetal, mas um chocalho que se dobrava extenuado pela sua própria beleza e estranheza. Embora tivesse eu crescido no campo, e não exagero ao dizer que nossos vales eram como que resultado de uma fantasia de um artista que buscava vingar os mistérios da natureza, nenhuma daquelas flores e frutos me era familiar e aquela estufa se tornou para mim um assombro, repleta de anódinas inverossimilhanças, entrecortada de mistérios saborosos e insolentes. Foi quando, andando ainda pela entrada do jardim, ouvi um som estridente entre as folhas escuras de uma palmeira chorona.

Era Goldoni, que pululando entre os galhos e troncos maleáveis, mais parecia um bárbaro na selva, abatendo os germes com um cajado de cedro. Fiquei parado em silêncio, observando o que fazia, até que não pude mais visualizá-lo, visto que já borboleteava atrás de um salgueiro de múltiplas raízes. Lembrei-me que Cosmati havia-nos dito algo sobre a suposta mudez de Goldoni, e ainda não estava familiarizado com o pequeno, embora já não me assustasse com sua aparência. O dia começara a nascer, reconheci aliviado, e então a luz iluminou um instrumento enorme, preso por correntes de elos de diferentes tamanhos, preso ao teto e que descia imponente até um metro dos tijolos do chão. Aproximei-me com a coluna arqueada, me perguntando qual a exata utilidade do aparato e vi alguns ponteiros esbranquiçados por uma pelugem mofada que apontavam para cinco pequenas gavetas de ferro, onde pude ler: Solstício invernal, Veranino, Ventos outonais, Deoses primaveris e Serralho, mas enquanto ainda lia, Goldoni surgiu como um raio detrás do aparato, sem emitir ruído, com sua face direto a meio metro dos meus olhos arregalados, no que caí com o susto, no chão, incerto se havia visto um monstro ou entrado num pesadelo, ou os dois. Ele riu. “- Então sabes rir de minhas inquietações?” – lhe perguntei, levantando com algumas folhas presas na calça. Goldoni me esticou a mão e enquanto me ajudava, desceu de uma pequena escada que havia presa às costas do instrumento. “- O que dizer a um mudo sobre inquietações?” – falei enquanto espalmava as folhas. “- Ignôtus furmêga!” – ele exclamou para minha total surpresa, e percebi que apontava para um monte de pequenos insetos que se esgueiravam minha bota esquerda adentro. Não era latim aquela sua língua, tampouco uma espécie de italiano, ainda que arcaica, ou francês, ou alemão. Era uma forma sua de expressar pensamentos e visões, com se as suas conclusões e as imagens que captava se condensassem de delírios à ondas sonoras, vibrando através de sua garganta, sem passar por qualquer filtro de coerência ou lógica sintática, mas fosse apenas um repertório errante de palavras distintas, ocasionais, mas precisas que circulavam livremente entre seu cérebro e sentidos, para indicar, estranha metáfora pessoal, as qualidades do cenário que seu cérebro esquadrinhava.

“- Está claro! Queres me alertar para as formigas que entram em minha bota!” – disse-lhe com ar perplexo. “- Quê podemos falar… o que é isto, para que serve, de que lugar veio?” – apontei para os ponteiros do aparato a nossa frente.

“- Cousas humanus, gota D`agôa, embriandus pedra, astrágalo minimum quod sic”- ele me respondeu e olhava das flores a nossa volta para mim, e novamente para as flores, girando seu cajado de cedro (cedro?) com sua luva única e amarelada na mão esquerda. Pegou então uma flor cor de limão e a estendeu até que eu pudesse cheirá-la. O perfume era doce, seco e suave, mas levava a estranhas visões. Ao seu odor, olhei novamente para os ponteiros do aparato e, no vidro antes deles, apareciam círculos vermelhos e negros, cálculos do que me pareceu longitudes e latitudes subtropicais e tropicais, mas aquilo era como algo que flamejava no ar, embora eu as visse no vidro que encobria as gavetas de ferro. A partir dali, passei a considerar normal qualquer sortilégio. “- Graphicus genes embriandus pedra mortalis.” – e Goldoni me apontava algo entre aquelas marcações como se ele também as visse, da mesma forma que eu, depois de cheirar a flor cor de limão. Descreveu um caminho com o dedo e pude ouvir sua respiração com a de alguém que se excita ao revelar um segredo sequestrado e de grande valor. “- O gráfico é o início do embriandus pedra mortalis? Mas o que significa isto… ‘embriandus pedra mortalis’?” – quando lhe perguntei, ele se alarmou e correu em volta dos troncos para pegar sua sacola de agulhas e fez como se tivesse sido atingido, no coração, por uma delas, encenando, o que me pareceu, sua própria morte. Depois deitou-se estirado no chão, reunindo um pequeno buquê em seu peito, como num fúnebre ritual. Pedra mortalis… “As lápides! Meu pai esteve aqui, pedreiro que constrói lápides!” – gritei extenuado pela decifração, e Goldoni jogou o famigerado buquê pelos ares, e corria a meu redor enquanto as flores me caiam no rosto, satisfeito com sua interpretação que eu acabara de decifrar.

“- Hipnosys mathemathycas lugaris.” – e ele me mostrou estranhas lanternas alongadas com locais para se ver, apontando através do teto envidraçado da estufa, o céu agora já tomado pela luz do dia. Vi algo como átomos que dançavam entre as nuvens, esmeraldas, tudo esquadrinhado pelas mesmas marcações das estranhas longitudes que apenas pude reconhecer após o odor da estranha flor cor de limão. “- Homem, tens que me ajudar a encontrar meu pai. És o único que sabes que ele passou por aqui? Partes conosco ainda hoje?” – mas Goldoni, silenciando, pegou o cajado e sumiu no meio das árvores, alheio a meus gritos de socorro. Saí da estufa como alguém que volta de um outro planeta, enchendo os bolsos com aquelas flores cor de limão e corri para contar as revelações que tivera a minha curandeira. “- Quanto às trilhas a seguir, seu pai chegou as mesmas conclusões que nós. Preferiu os caminhos do centro, evitado dar de frente com as armadas da igreja. Não nos encontramos longe, em distância, mas o caminho são tantos adiante que há um infinito abismo antes que possamos descobrí-lo sem qualquer ameaça.” – ela me disse quando lhe contei sobre o que acabara de conversar com Goldoni. “- Mas o anão não é mudo?” – ela me perguntou.

“- Não me importa que seja o próprio demônio!” – respondi caminhando de um lado para o outro em nossa pequena cela, o galgo me seguindo com os olhos. “- Se for o demônio, te enganas e és então um tolo a seguir o que me dizes.” “- Por que me enganaria? É um pobre, um infeliz alienado entre os perfumes de flores alucinógenas e agulhas carnavalescas. Além do mais, como poderia saber que meu pai é pedreiro e faz lápides?” “- Talvez tenhas decifrado o que queria teu subconsciente ter decifrado, e assim tu mesmo te enganas, e não há segredo decifrado nenhum, mas apenas uma salvação que tu mesmo criastes para suas próprias inquietações, nada além de fantasias.” “- Mas de que lado estás?” – trovejei impenitente. “- Estou a querer ver com olhos de alguém que não se entorpece com uma flor cor de limão. A razão me parece ser a única luz para encontrarmos seu pai.” “- Uma bruxa que me fala da razão… nada mais paradoxal, não é?” – e enquanto lhe dizia isso, tentava reconstituir em minha memória todo o dialógo que tivera com Goldoni, mas essa busca, logo vi, era vã, e talvez minha curandeira tivesse mesmo a razão. “- A vida é paradoxal, uma vez que sua única certeza é seu próprio fim. Poções, zodíaco e metafísica, tudo pode ser bruxaria, até mesmo a razão. O que nos leva à fogueira não são poderes sobrenaturais, mas o discernimento da verdade concreta, e esta inibe o poder da igreja, revela sua fragilidade, e então nos perseguem até a morte. Somos bruxos aos olhos dos crentes cristãos, mas os olhos de Deus, somos tão racionais quanto qualquer profeta ou poeta que verse (e as poções dos poetas não seriam seus versos?) sobre a verdade; e somente a verdade, não os delírios de um mudo falante, pode nos conduzir a encontrar seu pai e Alermano, caríssimo.” – e pensei naquele momento que ela apenas interrompeu seu discurso porque Cosmati, o glutão, adentrara sem avisos nossa cela.

“- Mas que diabos, essas celas estão cada vez menores!” – ele dizia ao esbarrar em cada objeto (um vaso, uma jarra com água e uma cadeira de madeira), ainda que poucos, espalhados na entrada. Como ficamos quietos, ele logo se ajeitou o melhor que pôde e, abrindo um sorriso, alardeou: “- Venho convidá-los ao fim de nossos festejos, começaremos dentro de pouco.” “- Agradecemos senhor, não podemos dizer que encontramos ou que ainda encontraremos maior hospitalidade do que recebemos durante esses dias por aqui. Suas festanças são paradisíacas, e muito nos encantou poder participar de vossa cultura, mas temos que partir, visto que ainda temos muitos caminhos, e muitos deles são por demais incertos, para seguir.” – meu leitor logo deduzirá que tais palavras foram proferidas pela mulher, mas o que parecem suas palavras me saíram direto da boca, impressionando ninguém mais do que a mim mesmo. “- Ora, aqui o hoje é sem fim, e o futuro, caros amigos, consiste apenas em chegar, no seu amanhã, ao dia anterior.” – profetizou Cosmati, ainda que de maneira tão confusa que eu, o galgo e a mulher nos entreolhamos perplexos, buscando alguma resposta lógica e convincente àquele seu comentário lúdico. “- Não queremos enganar o tempo, senhor, somos seus escravos e assim será até seu fim. Mas antes que as coisas da natureza morram todas e nos rodeiem no fim dos tempos, temos que continuar caminhando, pois se o amanhã nada mais é que o dia anterior, o hoje é apenas o que nos resta para exercer algum livre arbítrio”.

“- E neste decidimos partir, agradecendo, mais uma vez vossa bondade.” – completei a resposta dela, enquanto já arrumava nossas provisões, que multiplicaram-se exponencialmente durante nossa estada ali, para reiniciar a viagem a que nos destinamos. Cosmati nos abraçou com seu ar caricata, emitiu algumas saudações entremeadas por gestos incontidos e treatrais e se foi porta afora. Partimos logo depois e não sei dizer se mais ou menos lúcidos e racionais do que quando chegamos. Levava as flores alucinógenas que pegara na estufa de Goldoni, certo (e tal certeza se confirmaria mais rápido do que pude prever) que teriam alguma utilidade futura.

Rodrigo Monzani

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