Simplicíssimo

Aurora (XIX)

XIX

– És um fio da quimera de religiões

Refletindo sobre os humanos maquinamentos de Vicenzo, que por humana definição estariam repletos de erros, retrocedo à origem da fascinação que este perseguido exercera naquele grupo de famigerados: o povo, certamente por algum efeito ou causa de sua alma, tem algo daquilo que gosto de chamar de “necessidade do fantástico”, de um autoconhecimento que, embora almejado a baixo custo, honestamente satisfaz seus anseios e alegrias. Vicenzo atingira tal grau artístico que sua obra se encaixara perfeitamente nesta ordem, estavam necessitados de arte, oprimidos pelas interpretações cristãs da época; ele representou o desejo satisfeito, um ponto de fuga para excluídos, maltrapilhos e dementes, fato que camuflou o curso leviano e insano pelo qual suas conclusões caminhavam. Enfim, bizarrices eruditas, virtuosas indolências, viagens no tempo, estudos sobre populações lunares, lógicas insanidades, caleidoscópios aristotélicos (capazes de ver não somente as ordens celestes, mas também as celestes ordens de um mundo de outra dimensão que não a humana), relógios de cinco ponteiros de sentido anti-horário e brigues capazes de navegar movidos pelo empuxo da água em contato com um pó armazenado em seus porões, obtido, como o ópio, diretamente das papoulas; tratados sobre a metafísica original do cristianismo, visões orgânicas e inteligíveis da história humana, conceitos da criação para o conceito de providência, ordens do governo divino do mundo, estudos suscetíveis sobre a racionalidade.

O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo metafísico. Entretanto, Vicenzo, para entender realmente, plenamente, o plano da história, o relacionou à Redenção, explicando o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo, assim, tornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus, seria representada pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento, que séculos mais tarde entrara em corrupção. Contra esta cidade se ergue a cidade terrena, mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos. Para Vicenzo, a inquisição representava esta cidade terrena.
Estudara ainda os manuscritos de Aristóteles que, por um desvio acidental do destino e por meio de seus discípulos, estavam enterrados na ilha onde Cristo teria morrido e ressuscitado, de onde o próprio Vicenzo os teria retirado somente séculos mais tarde e que versavam sobre a física, os espíritos e Deus, sobre as chaves da natureza das coisas, não apenas da forma como se comportavam no presente, mas também no que potencialmente viriam a transformar-se; sobre a biologia, nos quais o grande filósofo, partindo de uma observação sistemática dos seres vivos, e não desdenhando estudar vermes ou insetos, registrou perto de 500 classes diferentes de animais, dos quais dissecou aproximadamente 50 tipos, sendo o primeiro que dividiu o mundo animal entre vertebrados e invertebrados sabendo que a baleia não era um peixe e que o morcego não era um pássaro, mas que ambos eram mamíferos; outros manuscritos sobre a política, seus primeiros sistemas lógicos, onde Aristóteles enumerara um total de 158 constituições de cidades ou países diferentes e partindo da sua diversidade procurou depois as suas semelhanças e diferenças, pondo em evidência o que constituía a natureza de cada regime, evitando, quanto pode, mostrar as suas preferências por um ou outro regime político.

Havia Vicenzo encontrando, ainda na ilha, por último, os ensinamentos do filósofo a Alexandre Magno antes de sua ascendência ao trono, sua infância e suas confissões que lhe revelaram como um aluno apaixonado pelos autores clássicos (diz-se que adormecia com a Ilíada de Homero, debaixo da almofada, e até sonhava ser como um dos seus heróis, Aquiles), manifestando igualmente interesse pelas discussões filosóficas, a investigação da natureza, a medicina, a zoologia, a botânica, fazendo-se acompanhar nas suas expedições militares por um grupo de soldados encarregados de sua segurança e que, aos fins das tardes, também se rendiam aos ensinamentos sobre o mal, a liberdade, a graça, a predestinação de Aristóteles… Percebo agora que a vontade dos seguidores de Vicenzo não poderia ser determinada pelo intelecto lógico, mas precedia-o nas suas intuições mais surreias e Vicenzo Locci, sua obra, representava a personificação de tal vontade. Não se tratou buscar observações empíricas ao que dizia em seus estudos, mais apenas de acolhê-los como científicas atitudes teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um ato de inteligência e que esta inteligência não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor, (ah, e como Vicenzo amava seus estudos!) uma edificação maravilhosa num deserto de perseguições católicas, o esplendor de inquietudes subterrâneas e de resíduos isolados daquilo que se poderia chamar de ‘a arte perdida’, o desejo de sonhar, de inventar, de arrancar as almas do lodo da rotina, de acreditar que ao se virar uma pedra não encontraremos apenas vermes, mas todo o mundo dos vermes, como se Deus, caminhando solitário e pensativo, se sentasse sobre a lua e, abaixando a face, nos visse em nosso mundo, sua criação, tão ínfimos e prosaicos como próprios vermes escondidos sobre a pedra atmosférica das nuvens.

Vicenzo era o amigo desejado, a explicação profunda, o abrir dos olhos da criatividade, o impulso para fora das grades inquisitivas, o não confundir, o sonhar, o conhecimento, era elemento de conotação artística, era a esperteza nas oposições, era a vitória da imaginação, a virtude humana redescoberta através da capacidade de despedir-se do real e vagar incólume pelas falsas verdades (ou seriam boas mentiras?) que se escondem num mundo surreal. Talvez sua mais difícil tarefa tenha sido fazer com que tudo permanecesse vivo, por mais bizarras que, como o Zênite Austral, suas teorias fossem consideradas pelos lógicos católicos; e seu fim incerto, sua morte incógnita foi o perfeito desfecho de uma vida predestinada às contrariedades entre lógicas e sentimentos, entre os amores e a exatidão sintética de um mundo impossibilitado de pensar sem a ameaça da fogueira. Tornara-se objeto de culto, uma verdadeira religião que, de tão divergente e bizarra, se tornara necessária. Por fim, um modelo, mas não como Platão e Boécio, não como Tomás de Aquino e Santo Agostinho, mas como um personagem fabuloso e cativante de um poema épico, esperando eternamente o retorno da fantasia e das artes, como um duende nascido num conto de fadas, além do bem e do mal, imortal.

Essas eram as razões, deduzo, pelas quais todos naquela peregrinação lhe eram tão devotos e também o motivo que levava o culto a Vicenzo ser visto como um grande trunfo contra a inquisição, e, portanto, um aliado (através de seus seguidores) das facções religiosas que intentavam a queda do papa Clemente. Inútil dizer que a paixão devota dos franciscanos era ardentíssima e qualquer arma que lutasse em favor da ordem seria bem vista, desde que não ultrajasse a fervorosa relação que tinham com Deus, com a Terra e seus elementos; tudo imperfeitamente adequado a uma instituição religiosa que aos poucos corroía-se por mazelas políticas, iniciadas alguns séculos antes: datam das épocas dos ocupantes muçulmanos na Terra Santa, principalmente em decorrência da ocupação dos lugares de veneração dos cristãos e remontam ao século VII com a ocupação dos maometanos e, mais tarde, os turcos (século XI) que dominaram a região de Jerusalém. A princípio oito batalhas, as cruzadas, estenderam-se de 1095 a 1270, se bem que após esse período, durante muito tempo foram outras organizadas, porém, com características diferentes das Cruzadas primitivas. Os cristãos de Jerusalém sempre haviam sido tratados com hospitalidade pelos muçulmanos. Os árabes também consideravam Jerusalém uma cidade respeitável e Jesus, segundo eles, simplesmente um dos profetas que haviam precedido Maomé. Quando Al-Hakim, o califa louco do Cairo, destruiu a igreja do Santo Sepulcro (1010), os próprios maometanos contribuíram substancialmente para a sua restauração. Entretanto, com o avanço dos turcos modificou-se completamente a situação. Em 1070 os turcos haviam tomado Jerusalém aos árabes e começaram então as perseguições e profanações que os peregrinos narravam com cores vivas no Ocidente. Nessa época, um piedoso peregrino chamado Pedro d’Amiens, ao retornar da Terra Santa, foi ver o Papa Urbano II a fim de descrever-lhe os vexames dos cristãos na Palestina e profanação dos lugares santos pelos infiéis. Por este motivo, o Papa convocou o concílio de Clermont (1095), ao qual compareceram muitos príncipes do Ocidente. Lá compareceu também Pedro d’Amiens e expôs com tal emoção a triste situação do país de Cristo que todos os circunstantes, em lágrimas, romperam num grito uníssono de fé e coragem: “Deus o quer! Deus o quer! “. O Ocidente em peso pôs-se em movimento para libertar do poder dos turcos a Terra Santa. Porém, até mesmo na luta, os católicos demonstravam interesses diversos e os embates entre franciscanos, beneditinos, carmelitas e algumas outras ordens se acentuavam.
Paralelamente, ainda no campo religioso, estes embates excitaram em todo o oriente nova vida e expansão de ordens religiosas. Devido às invasões dos povos bárbaros, as ciências por longo tempo se haviam refugiado nos conventos; porém, recomeçavam a espalhar-se entre o povo. Fundaram-se universidades e escolas, como em Paris e Colônia, cujas cátedras eram ocupadas por homens distintos e de vasto saber: Santo Anselmo, 1109; Alexandre de Hales, 1245; Santo Alberto Magno, 1280; São Tomaz de Aquino, padroeiro das escolas Católicas, 1274; São Boaventura, 1274; Venerável Duns Escuto, o “Doutor Franciscano”, 1308, com seus símbolos do Tau franciscano, seus presépios, as orações no Monte Alverne, a porciúncula, seus cânticos das criaturas, a saudação de paz e bem, seu crucifixo de São Damião e seus serafins alados.

Mais de dois milhões de homens aí sacrificaram suas vidas nas batalhas. Tantos sacrifícios não eram vãos, pois grandes benefícios decorreram dessas cruzadas, para toda a sociedade. Também houve a fundação de ordens religiosas militares: A Ordem dos Cavaleiros de São João e a dos Cavaleiros Teutônicos que tinham por fim aliviar os sofrimentos dos cristãos no oriente e combater os sarracenos com os rostos queimados pelo sol, suas pálidas cicatrizes de antigas batalhas e suas ruivas coroas de longos cabelos que lhe conferiam uma aparência leonina. Ademais, os grandes centros da civilização sarracena não eram Jerusalém e Antioquia, mas sim Bagdá, Damasco, Toledo e Córdoba, não visados pelas expedições cristãs. Contudo, em decorrência, foi sensível o incremento do comércio oriental. A prosperidade de cidades comerciais italianas que substituíram Constantinopla como mediadora entre o comércio do Oriente e do Ocidente foi paralela ao impulso recebido pela economia monetária da Europa. As principais ordens monásticas fundadas durante esta época, estudadas também por Vicenzo, são representadas pelos camaldulenses, por São Romualdo (1037); dos cartuchos, por São Bruno (1101); dos premonstratenses, por São Norberto (1134); dos cistercienses, por São Roberto e São Bernardo (1153); dos carmelitas, pelo d. Alberto (1214); e dos franciscanos, por São Francisco de Assis (1226). Em toda a parte floresceu a santa religião. Os fiéis construíram catedrais magníficas, que ainda hoje causam admiração e a fundação dessas e outras ordens religiosas dava à Igreja um brilho especial, o que também seria um de seus maiores demônios. Grande é o número de santos que estas ordens contam em seu grêmio. A toda parte do mundo mandaram seus missionários para pregarem o Evangelho, via de regra explanado de forma dissimile e equivocada, e a evolução de tal contexto durante séculos geraria o quadro no qual os seguidores de Vicenzo seriam interessantes a qualquer uma dessas ordens que intentassem algo como um golpe religioso, a tomada do poder papal e que significaria a libertação de seus perseguidos na inquisição, como Alermano.

De fato, o golpe estava preste a acontecer e, do outro lado dos muros palacianos da sede católica em Avignon, a morte, liquefeita, já começava a correr nas veias do santo papa.

Rodrigo Monzani

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