Simplicíssimo

Aurora (XVI)

XVI

– Eis a tua quarta solidão

Caminhamos entre ruelas mal iluminadas dentro da chuva, a largos passos, e encontramos a caravana abrigada sob uma velha ponte de ferro, aparentemente abandonada há tempos. A estrutura férrea tilintava com aquele inconstante temporal, aumentando o frio da noite e ao perceber aquele cenário como um todo… (velhos encolhidos em mantos puídos e úmidos, mulheres com os cabelos molhados dançantes com o vento, cavalos reunidos em círculos, fechando a coleção de estranhezas que os viajantes levavam, – pensei ter visto um enguia se esgueirar entre os tijolos, mas tratei de atribuir a visão ao cansaço – homens esfumaçando seus cachimbos, criando sombras sinistras e desfocadas…) ao ver aquele arrepiante espetáculo que despontava dolorosamente para mim, fui capturado por uma estranha reflexão: pensei que todos os seus argumentos para estarem ali seriam razoáveis e compreensíveis se tomados em si mesmos, mas não haveria nada que pudesse justificar a situação em que nos encontravámos se tais argumentos fossem tomados em conjunto.

Embora todos caminhassem pela fé, as palavras de cada um se tornavam desconexas quando analisadas entre si; e a religião, então, assim como a medicina, passava de um credo da alma à necessidade de ministração de venenos curativos; assim como a metafísica, significava uma perturbação de sutilezas; como a ética e a astrologia, passava de generosidade à superstição; como a ótica, tornava-se enganosa; como a música, fomentava os amores e como a geometria e a matemática, encorajava um injusto domínio que, por mais ingrato, possuía exatidão de significados incontrariáveis; denunciando-me, através daquele visão da caravana, que assim como a arte das ciências, a arte religiosa e de seus credos, se levada ao extremo, pode nos oferecer também ficções, abre uma porta no Palácio dos Absurdos (pois somente por absurdos poderiam ser tomados os motivos daquela viagem) que, uma vez transposta por leviandade, se fecha atrás de nós, deixando invisível na escuridão a linha que separa a lucidez da mais ingrata loucura. Um sentimento, então, de falta de vontade e declínio de valores me tomou conta e da religião de meus companheiros ao túmulo de Vicenzo Locci, não capturei sequer a compaixão, mas, malgrado suas virtudes, apenas seus efeitos depressivos. “- Não retornei a este lugar por quase vinte anos, e no entanto o encontrei sem ao menos olhar para cima.” – disse o velho monge, torcendo a barra de sua túnica encharcada, reencostando-se na parede de tijolos velhos que revestiam o ventre da ponte. Ele me olhou enquanto minha companheira se aproximava com o galgo e, ao que me pareceu, o monge esperou aquele que julgou o momento certo para nos perguntar:

“- O que dois perdidos como vocês fazem nesta caravana? Certamente não são espirituais, são?” “- Nossos motivos apenas interessam a nós, senhor.” – a resposta rude da mulher não me pareceu intimidá-lo. “- Uma dura resposta pode esconder, senão uma dura mentira, uma dura verdade.” – ele disse com um estranho ar de afetividade. Ao perceber nosso silêncio, ele continuou: “- Não me desagrada ouvir uma ermitã acompanhada de um cachorro e um menino.” “- E se não quisermos falar?” – eu disse. “- Então haverá algo de desconfiança nisso. Afinal, o que querem no túmulo de Locci?” – ele inquiriu, enquanto os odores da noite sopravam frios ao redor de nossas cabeças. Pensei em que ponto poderia lhe revelar a verdade. Certamente a revelação de que nos escondíamos do imperador naquela caravana, que éramos procurados por assassinatos de seus cavaleiros e que intencionávamos reencontrar meu pai e Alermano, outro assassino; tudo colocaria em questão nossa permanência na viagem, que malgrado seus vícios, nos era a única via de retorno seguro a Pádua. No entanto, havia a necessidade de uma resposta, pois mais alarmante que a própria verdade, é a suposição realizada em sua ausência. Articulei rapidamente alguns argumentos de natureza incerta, entremeando passagens verdadeiras com algumas boas mentiras, como diria minha companheira. Ela e eu nos revezávamos nas explicações e enquanto ela digredia para atrair a atenção do velho, refleti sobre a simulação de uma verdade que fosse convicente não apenas para ele, mas também para nós.

Durante anos aprendera que a virtude dos que inquirem é seu livre arbítrio sobre verdades e mentiras, que estes seus Poderes são um monstro insaciável e que, para serví-lo como um escravo devoto, é preciso tirar proveito de cada migalha que caia de sua mesa, valendo-se de toda ocasião para um lenta e tortuosa ascensão do que hoje gosto de chamar de o “Discurso Real”; caracterizado não necessariamente por verdades, mas edificado por rápidas inteligências argutas que, embora voltadas para as mentiras, possuem uma estreita relação com os espíritos mais sábios e com aqueles que não desejam a ‘purificação’ da fogueira. Desta forma, naquela noite sob a ponte imersa na chuva, tínhamos cultivado nossas próprias mentiras (que à parte a origem bastarda de sua vileza) não temia ser eminente nos acontecimentos irreais, para então tornar real nossas mentiras mais eminentes. Meu leitor pode-se perguntar qual seria a necessidade de uma explicação sobre nossa versão iverídica ao monge, uma vez que a própria revelação da verdade, nos colocando fora da caravana, já me bastaria para justificar aquela simulação. Todavia, é necessário descrever sobre como cada criatura constrói sua própria sabedoria, e a minha, se é que existe, tem como pano de fundo um caráter que sabe que jogar abertamente não traz nem utilidade nem prazer. É este caráter, construído naquela minha juventude distante, que trago até estes meus dias. Foi este estado do espírito que me permitiu proezas tão torpes quanto àquelas que estou prestes a narrar, assim, peço então que compreendam que quando não se pode vestir com a pele de leão, veste-se com a da raposa, porque desde o Dilúvio de Noé salvaram-se mais raposas do que leões. Não me vanglorio de tais qualidades, mas, por Decreto Divino, (ou diabólico) de não as ter utilizado para um mal supérfulo.

Passei a mentir habitualmente, mas não sem critério. Sabia que, para ser acreditado, deveria dizer a todos, às vezes, a verdade quando esta me prejudicava e a silenciar quando poderia obter dela algum louvor. Convecera-me que simular não é um defeito quando a verdade nos prejudica, embora a temeridade pudesse me causar fraquezas e desta maneira, me tornar um indigno de mentiras previsíveis. Assim, não exagerava ao agir com dissimulação, receando que, na segunda vez, descobrissem logo o meu logro. Para tornar-me mais ardiloso treinava suportar os mais tolos, dos quais não me afastava. Não era tão incauto a ponto de atribuir-lhes cada erro que cometiam e, munido assim de suas confianças, poderia contar com suas influências perante alguns casos nos quais minha simples eloqüência não me bastaria para meus fins. Em resumo, procurei fazer aquilo que poderia trazer-me vantagem própria, mas mandava fazer por tolas mãos alheias aquilo que poderia provocar rancor. Foi essa habilidade, a de não me revelar jamais, que me permitiu chegar ao fim de minha missão, por mais surpreendente, triste e longe que o mesmo se encontrasse. Dei mostras evidentes de piedade e considerava indignas apenas a palavras não cumpridas; a virtude conculcada; o amor por si mesmo; a ingratidão; o desprezo pelas coisas sagradas, blasfemava contra Deus em meu coração e acreditei que o mundo havia nascido por acaso, confiando, todavia, num destino disposto a desviar o próprio curso em favor de quem soubesse domá-lo em benefício próprio. Vivi meus dias como um assassino que olha por detrás de um cortinado, onde não brilham as lâminas dos punhais; em meu maquinar, renunciava a um bem imediato quando me sentia arrastado para outra maquinação e sofria com o demorar das práticas de minhas teorias. Esta sombria e obstinada ambição me priva hoje de toda paz de espírito, e em minha cabeça parecem dançar gigantes de fumaça em batalhas com soldados de sal, infindáveis, de onde não se vê o mar, a terra ou o céu, onde não se pode encontrar quietude e tudo parece ser razão de ofensa e de tormento.

Não ri jamais, a não ser para embebedar algum incauto confidente e, em segredo, controlava minhas expressões frente ao espelho para ver se a maneira pela qual me movia poderia revelar minha ânsia, se meu olhar parecia-me muito insolente, se a cabeça, mais inclinada que o necessário, não manifestava hesitação e se meus olhos não me faziam parecer exasperado. Mas, não contente em simular a perfeita expressão de minhas mentiras e de ter no próprio poder aqueles cujos pensamentos relatava, almejei ser o que, naqueles dias, chamava-se de “Persona Non Grata”, ou melhor, “Dupla Persona” que, como um monstro de qualquer lenda, fosse capaz de caminhar perfeitamente por dois movimentos contrários. Se na arena onde combatem certos poderes pudesse existir a mínima mancha da intriga, poderia inserir-me no lado contrário e manter-me vivo sobre meu objetivo de reencontrar meu pai e meu irmão. Um Minotauro de naturezas dessemelhantes, um duplo espião, uma víbora entre as rosas, cão de dois focinhos que ladra após descobrir a quem quer e como quer dilacerar. Mas nem mesmo no mal há perfeição e minha máscara nunca haveria de cair após meu único passo em falso, dado ainda quando me conformava naquele novo estado de espírito, quando retomamos a peregrinação na manhã seguinte ao temporal. Deixamos a cidade e, da chuva, restaram apenas algumas poças que retratavam o céu como lâminas esfumaçadas. Era uma manhã muito clara e lembro-me que sentia fome. Existiam morcegos, gafanhotos, mariposas e corujas no caminho e, ainda com sono, à minha companheira, disse o que não deveria.

A velha senhora do pífaro ouviu-me em algum comentário (e realmente não me lembro exatamente qual) sobre os assassínios que cometemos eu e Alermano. Um comentário que fiz a minha curandeira, inescrupuloso e fatal que lhe revelou meu passado criminoso e deplorável. “- És um assassino!” – disse-me a velha senhora com seus olhos cegos, tremendo, me segurando pelos braços. Soube naquele momento que, se a notícia se espalhasse, de nada adiantaria nossa busca e, uma vez fora da peregrinação, fatalmente seríamos pegos pelas delegações imperiais. Disse à senhora para que se calasse, mas, em seu tormento, ela parecia ouvir apenas o meu comentário, repetidamente, e seguia dizendo: “- És um assassino, menino!”. Prefiro dizer que quem a matou foi sua impertinente indiscrição, embora o tenha feito através de minhas próprias mãos. Quarta vítima, quarta solidão.

Rodrigo Monzani

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