XX
– Escreves sobre as almas das palavras
Saímos do mausoléu, eu, o galgo e minha curandeira como que de uma antiga orquestração de assombros e, com a imaginação repleta de mundos inauditos, pareceu-me que, ao ar livre novamente, vindos daquela cripta repleta de tesouros, reencontrávamos com nós mesmos, nossos espíritos, brilhantes no fim da tarde, nos reconheciam pela retina e tomavam seus lugares novamente num nauseante pouso de retorno à realidade; o que, com o passar dos anos, fez as lembranças daquela peregrinação revestirem-se de uma grandeza brutal; e seus peregrinos, aqueles que tão brevemente conhecemos, tornaram-se soberbas vanguardas do bestiário que construí em meu passado.
Em meus sonhos repletos deste sagrado horror infindo, aqueles peregrinos revivem num quase lugar-comum, ainda que eterno, puxando-me pelas barras das calças enquanto durmo, o vidreiro com seu hálito insuportável me mostrando um vitral com o retrato de Atlântida que acabara de lapidar a ponto de suas mãos sangrarem, gotejando em minhas pernas; a velha senhora do pífaro, meu quarto assassínio impune (e quantos ainda restariam!) tocando candidamente seu instrumento e traduzindo sua dor fatal através de trágicas melodias; um menino míope que sempre caminhava com uma ampulheta nas mãos levando-a aos ouvidos para escutar a terra correr de cima para baixo ludicamente; o velho monge com seu invencível interesse pelo mestre-gênio Vicenzo Locci, com seus exercícios de discurso sobre as Sagradas Escrituras e o fim dos tempos, com sua erudição simples, louca e despojada, e sempre deliciosamente inventiva e quase mágica, treinando seu coração para o reencontro com Vicenzo como um infante aprendiz que busca obsessivamente em seu mestre a surpresa da imaginação e o escape à inércia da mente, à preguiça, sem o medo de ousar ou quaisquer vícios imperdoáveis para tornar-se tão fabuloso quanto o mestre.
Existem grandes e inesquecíveis passagens destes meus tormentos que aqui poderia descrever, assim como há insignificantes lembranças que me ficaram na memória de maneira esplendorosa, mas me tornaria um escritor (ou um homem que apenas escreve) por demais prolixo se aqui todas denotasse, e penso que o maior risco que um autor pode cometer é a prolixidade, que o faz beirar o patético e mergulhar em melodramas dispensáveis por completo. Porém, só o tempo indicará se o que escrevo realmente persistirá, ou, como almejo, se estes manuscritos me servirão para alguma salvação ou alívio, se serão o ponto de fuga que tanto procuro para não adentrar a divina eternidade com os olhos repletos apenas de lágrimas de sofrimento, traduzindo meu prólogo e meu epílogo num único e visceral grito de dor, primorosamente concebido à luz desta catástrofe que se tornou minha existência terrena.
Seria muita pretensão almejar a salvação através da palavra escrita? Ou um escritor qualquer como eu, justamente, mesmo que movido por tal ingrata ambição, não deve deixar transparecê-la e não se permite ser descoberto como tal? E não seria algum tipo de salvação, virtude única da boa literatura, tudo o que a escrita tem a oferecer?
Parece-me óbvio que as palavras não nos pertencem, nem mesmo a quem escreve ou a quem as lê com suas estetizações de vanguarda; ou com suas envelhecidas, porém necessárias caretices.
Talvez seja por meio de alguma providência das inteligências angélicas que as palavras, os versos, as anedotas, as canções, as antologias, os sonetos, os libelos cheguem a seus autores, meras marionetes como as da encenação corsense, movidas por cordéis invisíveis que se perdem acima de suas cabeças infelizes repletas apenas de saborosas mentiras, estranhas concessões, sinapses de vida e diálogos que, implicitamente, apenas poderiam acontecer com Deus.
Talvez seja este estranho comportamento que torne as palavras uma única criação que, de tão prática e indomável, passa a criar o que antes era seu criador, externa-se direto de seu próprio interior para revestir-se a si mesma de consensos, anomalias, lembranças, razão, evidências e funções. Mas, à sua criação, não estariam repletas de erros humanos, não estariam condenadas ao cárcere da limitação e imperfeição dos homens antes que estes passassem a ser criados por elas?
Brutais são os efeitos destas palavras para mim, brutais serão seus efeitos na ordem de minha própria existência, assim como brutal é o meu interesse por tais respostas. Nesta ordem, continuo a escrever e a ler o que, mineralizado em algum recanto escuro e congelante de meu cérebro, consigo entender apenas superficialmente, mas que, ainda assim, é vital e profundamente ligado a minha saúde física e espiritual.
Um calhamaço escrito pode significar nada, ou ainda somente um sentimento, e uma palavra pode significar tudo numa infinidade de anseios que, paradoxalmente, somente podem vir à tona numa frase, num monólogo ou num solilóquio.
As palavras têm almas de musas, e seduzem neste perdoável vício de escrever, reservando-me de antemão o direito a meus manuscritos de serem tão eternos quanto os próprios clássicos, quanto as almas de cada palavra que aqui escrevo.
E tal pretensão me dói, como a constatação, enfim, naquela peregrinação de que meu pai não nos aguardava no mausoléu, nenhuma pista sua encontramos, nos restando, senão, voltar a Pádua, agora por caminhos menos sombrios e, portanto, àquela altura, mais providencialmente seguros.
Trieste, margeando a costa Sul da Friuli-Venezia Giulia e o Golfo de Veneza, ficava ainda há vinte dias de Pádua. Poderíamos seguir pela costa até Veneza ou entrecortar os bosques de estranho silêncio e perfume das planícies do Veneto, amparadas pelas sombras dos Alpes Dolomitas e serpenteadas pelos rios Plave e Brenta, a norte do Pó.
De certa forma, eu acreditava que tudo seria como antes quando reencontrasse meu pai e Alermano, que voltaríamos os três pela floresta após os dias de trabalho em nossa pequena oficina rodeada de carvalhos e que encontraríamos na rotina o mesmo conforto de outrora, os mesmos exercícios de lapidação, as refeições à luz de nossos lumes e as manhãs cujos detalhes lembro perfeitamente, mas quando as luzes naturais do dia se acendiam a cada nova aurora, e o círculo de escuridão no qual meus sonhos tomavam corpo davam lugar aos contornos mundanos de uma realidade diabólica e infeliz, tudo se tornava estranhamente ausente e eu sentia que meus anseios eram inatingíveis e até mesmo irreais, possuíam apenas uma forte carga emotiva e espelhavam as experiências de uma vida que, embora minha, nunca retornariam.
O tempo, o clima frio, as drogas de minha curandeira introduziram uma rapidez fácil e enganosa nestes meus anseios, como se tudo não passasse de um mero acidente passado, pontos de vista idealizados pela minha imaginação que lamentavelmente ainda nestes dias castigam meu coração.
Lamento por apresentar uma exegese tão oblíqua e resumida do que é, de fato, a parte central de minha história. Por alguma razão, para mim é frustrantemente difícil escrever sobre sentimentos, em larga medida porque o que sinto hoje está relacionado a meus piores demônios, à noites de insônia e de nublados pesadelos nos quais a poeira nunca abaixa e a luz nunca se acende, me restando caminhar tateando o vazio, sozinho e respirando pela boca, esperando encontrar algum facho de luz. Infelizmente, alguns sentimentos são por demais terríveis para serem compreendidos no tempo de uma vida.
Minha curandeira, percebendo meu estado de espírito, tentava me reconfortar, me encarando pacientemente calma, pensativa com seu ar de despreocupação. Às vezes brindava-me com histórias passadas nas terras que cruzávamos, enquanto descansávamos ao fim das tardes com o sibilar das chamas de nossas fogueiras, ou quando cavalgávamos lentamente à margem de algum riacho num vale estreito, escutando o ruído de uma revoada de pássaros que surgia entre as flores.
Lembro-me certa vez de acordar com o galgo a meu lado e a surpreender chorando, mas seus segredos nunca foram compartilhados comigo; parecia sofrer de um modo medieval, imperceptível para um observador incauto, mas por mais que tentasse esconder suas infelicidades, tinha consciência de sua perturbação o tempo inteiro e a admirava pelo modo convincente como a preocupação com o paradeiro de Alermano e de meu pai lhe desaparecia do rosto para dar lugar a uma expressão de consolo.
“-Lamento, caríssimo, mas veja, retornaremos a Pádua agora mais seguros. Já passamos pelos caminhos observados pelos imperiais. Os caminhos que nos restam agora são menores e mais tranqüilos, e viajamos sozinhos! Obviamente podemos ainda encontrar alguns bandos de traficantes, mas caso se lembre, não será nossa primeira vez.”
“- Traficantes de esculturas sagradas, o velho monge falou-me sobre tais contrabandos quando nos encontramos na igreja.”
“- Por dinheiro, neste dias, se venderia a própria alma…”
“- Por dinheiro, Judas entregou o Filho de Deus, não…”
“- Mas pense, caríssimo, se assim não fosse, Cristo não sofreria sua paixão, logo, não remiria nossos pecados e estaríamos ainda hoje condenados num mundo sem salvação e expiação de nossas faltas. Se assim não fosse, os profetas teriam cometido um grande engano quanto a Redenção e as Sagradas Escrituras, seriam, enfim, motivo de impagáveis pilérias e nada mais.”
“- Devemos isso à traição de Judas?”
“- Devemos reconhecer que o traidor foi peça do Plano Divino. Se aceitarmos a idéia de infinitos mundos, em cada um deles há de existir um Cristo, e também um Judas, e um Pilatos e um Barrabás para que, infinitos que são, tais mundos possam ser salvos da eterna perdição.”
“- Infinitas paixões de Cristo? Mas este Cristo que conhecemos não poderia ter sofrido por todos os infinitos mundos?”
“- Se assim for, então estes infinitos mundos estariam não em lugares ignotos e inencontráveis, mas aqui mesmo, capazes de nos observar, mas em dimensões que, de tão distintas, não poderíamos vê-los.”
“- Mas Judas estaria então, antes de seu nascimento, condenado a ingrata missão de ser o maior traidor de todos infinitos mundos, desta e de outras dimensões?”
Olhando ao redor e acariciando a cabeça do galgo, minha curandeira, lentamente, proferiu as palavras que hoje sei que também a mim se aplicam:
“- Como antes disse um dos profetas, alguns já nascem póstumos e a vida suprime a si mesma.”
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