Simplicíssimo

Cães

– Vamos sair ! Prepare o automóvel e o cão ! – dispara o homem, de repente.
 
            O automóvel é preto, de formas arrojadas e bastante confortável. O cão é um doberman marrom-escuro, orelhas e rabo no padrão da raça, porte avantajado.
 
– Diga-me, é impressão minha ou você está tomado de certa indisposição ? – pergunta o  homem, numa mistura de arrogância e ironia. 
 
O criado, constrangido, apressa-se em responder:
 
– Claro que não, senhor ! Imagine ! Sempre tenho o maior prazer em servi-lo.
 
– Talvez você esteja cansado de recolher copos e pratos pela casa, e de presenciar diariamente minha instabilidade emocional …    Acredito que o passeio fará bem a nós três !
 
Antes que o servo responda, ele se dirige apressado para a porta.  O cão parece irrequieto. Rosna assustadoramente em todas as direções.
 
– O que foi, rapaz ? Anime-se, vamos sair !
– Senhor, ele tem andado muito estranho. Acho que devo levar ele ao veterinário. Será que          não pode estar com raiva ?
– Só se for de você, seu imbecil… Você quer dizer hidrofobia, não é mesmo ? O animal está apenas estressado de tanto confinamento.
 
            E o homem discorre alguns minutos sobre psicopatologia humana e canina. Termina citando Freud e Pavlov. O criado ouve tudo atentamente.
 
– Nossa, o senhor realmente é um intelecto superior, uma sumidade !
– Não, não, não exagere. Apenas sou perspicaz e relativamente bem-informado – diz o homem, com falsa modéstia.
– Nós vamos mesmo para onde, senhor ?
– O trajeto do Parque.
 
            O trajeto do Parque significava uma volta pelo centro velho da cidade, contornando a estação e terminando pelo Parque Municipal.
 
– Ultimamente, ando muito estafado. As bolsas estão numa fase de instabilidade, os papéis disparam e despencam, e esta flutuação toda afeta bastante meu organismo sensível. Sem falar no maldito dólar ! – lamenta-se o homem.
 
 Ele fala sobre a situação do mercado financeiro em geral, inclusive no exterior. O cão, ao contrário do empregado, não parece interessado na preleção de seu dono. Muita conversa e quilômetros depois, eles entram no Parque. Somente um dos dois portões de ferro está aberto, o que obriga o largo veículo a passar com dificuldade. Ao lado, a guarita vazia.
 
– Veja que absurdo completo ! Há menos de três meses estivemos aqui, e não se via este abandono. É isto que o governo faz com o dinheiro dos meus impostos …
 
            Pouco depois, no meio do Parque, o automóvel começa a perder velocidade, até parar completamente na estrada de terra.
 
– Que azar, o cabo do acelerador arrebentou ! Bem, não se preocupe, senhor. Há uma loja de peças logo perto da saída. Já deve estar fechando, mas eu conheço o dono e …                                            
– Pare, pare, por favor … Depois de tantos anos, você não aprendeu ainda ? Não me fale nada, não me entre em detalhes, não me interessa nem um pouco. Traga-me apenas soluções.
– Perfeitamente, senhor, me desculpe. Então, nós podemos ir até lá.
– Como, nós ? Você deve estar brincando !
– Mas não posso deixar o senhor sozinho neste local deserto…
– Não ficarei só. 
 
            Enquanto o criado se afasta, o homem acaricia a cabeça do cão. O animal parece tenso. O homem liga o rádio e abre a porta do carro.
 
– O que foi, rapaz, você ouviu alguma coisa ?
 
            De trás de uma árvore, sai um enorme cão branco. É um vira-lata imundo, com enormes falhas na pelagem e feridas sobre o dorso. Ele se aproxima do automóvel, latindo
ameaçadoramente.
 
– Vai lá, rapaz, dê uma lição nele !
 
            O homem solta seu cachorro, que avança latindo, e o vira-lata rapidamente dispara em sentido contrário. Os dois se embrenham em meio às árvores.
 
– Ei, volte aqui, animal estúpido ! Era só para assustá-lo !
 
            O tempo passa, e nem sinal do cão ou do criado. O homem começa a ficar preocupado. Fala sozinho para afugentar o medo, como era seu costume.  E pragueja, também.
 
– Indolentes, imprestáveis ! Não se pode confiar em animais, tampouco em serviçais.
 
Mais algum tempo, já bastante nervoso, ele resolve abandonar o veículo. Anda algumas centenas de metros, procurando a saída do Parque. Mas a estrada possuía várias bifurcações. E as placas indicativas que ali existiam estavam simplesmente indecifráveis,
devido ao péssimo estado de conservação. Ele maldiz a administração pública novamente, e começa a correr de volta ao veículo, temendo se perder naquela vasta área arborizada. Tinha a estranha sensação de estar sendo observado. Quando avista o carro, ofegante, resolve parar para descansar. Senta-se numa grande pedra, local mais que inadequado para sua calça de linho, e se põe a pensar:
 
– Malditos ! Deixaram-me só ! Será que não existe um meio de fazer o carro andar ? Se eu conseguisse achar a tal loja… Não se pode depender de ninguém nos dias de hoje. São todos uns inúteis.
 
            Desalentado, olha para baixo e vê um embrulho no solo, logo adiante. Alguma coisa, além de mera curiosidade, o impele a abri-lo. Rasgando o papel apressadamente, surpreende-se ao encontrar dois sacos plásticos com um cabo metálico fino dentro de cada um. A impressão na frente da embalagem não deixa dúvidas. São cabos do acelerador.
 
– Que coincidência maravilhosa !  Por que não tentar eu mesmo ? – pensa o homem, recuperando o humor.
 
            Ele ri descontroladamente algum tempo, os sacos plásticos apertados na mão. Depois, sai correndo, disposto a fazer o que tinha de ser feito, embora não tivesse a mínima idéia de como fazê-lo. Não estaria tão animado, porém , se tivesse visto o corpo de seu criado, a poucos metros dali, atrás de uma moita. A roupa estava rasgada e o rosto completamente dilacerado, quase irreconhecível. De volta ao carro, a alegria do homem aumentou ainda mais, ao reencontrar seu animal.
 
– Você voltou, seu fujão !
           
            O cão olha fixamente o homem. Começa a rosnar e a latir.
 
– O que houve, rapaz ? Está me estranhando ?
 
            De trás do automóvel, saem o cão branco e dezenas de outros cães vira-latas, imundos e de aspecto doentio. O doberman se aproxima de seu dono e pula, derrubando-o . Atrás dele, vem o cão branco, e depois todos os outros. Mordem-no durante muito tempo, arrancando pedaços de sua carne sem poupar nenhuma área do corpo.
 
 
                                                                   – 0 –
 
 
            O homem acorda debatendo-se alucinadamente. O criado vem em seu socorro, e começa a sacudi-lo. O cão, lá fora, se agita inquieto. Corre de um lado pro outro, e vai forçando a corrente com violência, até arrebentá-la.
 
– Senhor, senhor, acorde !  Pelo amor de Deus, é apenas um pesadelo !
 
            O homem abre os olhos, mas não consegue despertar por completo. Permanece numa espécie de transe, tendo convulsões e gritando cada vez mais. Repentinamente, ele pega a base de metal do abajur de sua cabeceira, e começa a golpear a cabeça do criado.
 
– Seu desgraçado !  Me abandonou aos cães !  Traidor !
 
            O homem vai desferindo golpes progressivamente mais fortes e rápidos. Pego de surpresa, o criado não esboça qualquer reação. Os outros empregados adentram o quarto, assustados. Encontram o patrão sentado na cama, o olhar vazio e distante, o instrumento do crime em suas mãos. A cabeça do criado está empapada de sangue e hematomas. A polícia chega pouco depois. O doberman, que até então se encontrava na frente da casa, esconde-se no jardim. Aproveita o momento propício, quando da entrada dos policiais, e foge pelo portão aberto. O homem, que estivera durante este intervalo completamente apático, recomeça a gritar.
– Não, não, me deixem ! A culpa foi deles, os cães ! Temos que fugir ! Temos que fugir agora! Eles nos  pegarão !
 
                                                                  – 0 –
 
 
            No meio do Parque da Cidade, um grupo de cães se reúne. Ali perto, em frente ao portão principal, há uma viatura da polícia parada.  Ia rumo à delegacia, mas o cabo do acelerador arrebentou.

André Calazans

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