Simplicíssimo

Drops Paternos

Me corrija se estiver errado, mas tenho sentido você um tanto desiludido, mais cabisbaixo e indolente que o costume. Filho, não se deixe abater, você não tem motivos justificáveis para entregar a rapadura. Lembre-se daquele antiquíssimo ditado hindu, que o passar do tempo só reforça sua sabedoria e validade: “O espelho da vida é a sombra do infinito”. Nos momentos de desânimo e depressão, devemos nos agarrar ao bálsamo reconfortante destas palavras, que o seu padrinho, o palhaço Estrepolia, repete religiosamente antes de subir ao palco. Sabe, me sinto muito mais à vontade em falar assim com você, por bilhetes. Como alguém que não se furta em dar o ar da graça, mas tem horror de parecer inconveniente ou arriscar um cafuné em hora imprópria. Você compreende, é meu estilo. Seu avô, o príncipe dos malabares, também era assim.

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Ainda tem um pouco de mingau de maizena na geladeira, dá uma esquentada no microondas quando chegar. Domadores de leões como você não costumam prescindir desta iguaria, tão rica em complexo B. Meu garoto, não tente achar tanto sentido nas coisas que te disse ontem, quando conversamos a sós no picadeiro. É só a minha visão pessoal, que pode ou não ser considerada, dependendo do conceito que você tenha de mim enquanto pai. Ser pai é fácil, basta um momento de inconsequência ou de esquecimento na hora do bem-bom. Quero que a minha autoridade sobre você seja aceita pelo que digo e faço, não pelo que represento na hierarquia familiar. O fato de ser mais velho não significa que seja mais sábio que você ou que tenha me tornado menos louco com o passar do tempo. É mais do que notória a minha fama de zureta, e é impossível que tanta gente esteja errada ao meu respeito. Portanto, siga meus conselhos, mas com uma certa reserva.

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Esfrie a cabeça, literalmente: caia n’água, pegue uma piscina. Já tive lampejos mirabolantes entre uma braçada e outra, vale tentar. Estar desorientado em questões vocacionais é normal em sua idade, comigo não foi diferente. Antes de optar de vez pelo trapézio, fui corretor de ações da malfadada Fazendas Reunidas Boi Gordo, me embrenhei alucinadamente na venda de jazigos para cães e até uma fabriqueta de troféus e medalhas já passou por minhas mãos. Em todas estas investidas admito ter quebrado a cara – o que, contrariando todas as óbvias expectativas, jamais aconteceu comigo sob a lona de um circo. É, meu filho, a vida tem dessas coisas. O que parece seguro esconde grandes ciladas, e vice-versa.

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Pelo menos nos quinze ou vinte primeiros encontros, uma mulher só se sentirá segura em seus braços se seus braços não forem além do que ela julgue razoável. Entende o que quero dizer? Seja tolerante, extravase os hormônios solitariamente por enquanto. Uma garota que aceita carícias naquelas partes logo de cara não serve para ser mãe dos meus netos. Ainda mais em se tratando da filha da engolidora de fogo, aquelazinha de índole duvidosa. Vou lhe fazer uma confissão: só desembrulhei completamente a senhora sua mãe na noite de núpcias, e ainda assim depois de certificar-me que seus instrumentos de trabalho não estavam ao alcance da mão. Você sabe, ela era atiradora de facas no Stankowich, onde trabalhávamos na época. Bem, chega por hoje. Nos vemos amanhã, após o espetáculo.

Marcelo Sguassabia

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