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O Versículo de Joana – parte II

O Versículo de Joana (parte II de II) – por Rodrigo Monzani

           

"- Como… você faz isso?" – Joana conseguiu dizer com a voz sumida, desarvorada, após sua garganta emitir sons estranhos de espanto, o olhar mistificado em seu abandono enquanto os lençóis se moviam no ar, alto perto do teto sob os movimentos centrados da menina. As velas nos candelabros acendiam sozinhas e quando as duas foram até a janela, todo um galho nodoso de uma árvore no jardim caiu no instante em que Ivone olhara para ele e girou no chão, sobre a grama, enquanto ela descrevia um círculo com o dedo.

O quarto de Ivone era uma pequena câmara isolada das demais crianças. Todas elas possuíam um cubículo fechado com divisórias de madeira fina entre uma profusão de caixas – reluzentes, diversificadas e cheias de mensagens – que guardavam seus materiais de catecismo, bíblias, roupas de cama e banho, além de alguns brinquedos. Aliás, todo o mosteiro se subdividia em infindáveis desvios, quartos e salas escondidas, umas repletas de livros religiosos escritos em latim e outras vazias e silenciosas como um túmulo. As janelas em ogiva e o teto de carvalho lugubremente baixo davam um aspecto fantasmático monstruoso através dos corredores e dos pavimentos acerca do conjunto do edifício.

Numa de suas caixas, Ivone possuía uma pequena vitrola metálica que emitia um som indistinto e intrépido quando giravam sua manivela.

"- Olhe para o espelho." – disse Ivone entregando a vitrola a Joana, sentada na ponta da cama. "- Agora gire a manivela devagar."

"- Isso não é música de igreja…" – sussurrou a freira, sem se dar conta que uma lágrima quente lhe percorria os contornos do queixo.

"- Olhe para o espelho e não pare de girar a manivela."

Joana viu o marido entregue pela própria família à inquisição e começou a chorar histericamente, deixando a vitrola cair com um ruído agudo no chão. Ivone se abaixou perto dela, a abraçou com a boca ao lado de seu ouvido e disse:

"- Eles merecem vingança. Seu marido e minha mãe foram mortos… e agora, o que faremos? O que podemos fazer?"

Joana não conseguiu pensar em nada e entre suas lembranças tumultuosas, uma música de sua infância lhe veio à memória enquanto tremia.


Você poderia me salvar, doce amiga de coração puro?
Poderia me salvar do vácuo, da selva e do abismo pedregoso?
Poderia me salvar de minha mente e de mim mesma?        

Os olhos da freira ganharam um brilho extravagante, sombrio. Um doença fatal a atingiu e o espírito da menina pesava sobre ela, invadindo – lhe os hábitos, o caráter e como um veneno sutil, lhe perturbava terrivelmente a própria personalidade. Naquele instante, Joana  sentiu um estancamento sobre a fonte de sua vida e até mesmo seus pensamentos mais comuns ganharam ares de terror. A realidade a afetou como idéias loucas da terra de pesadelos que agora parecia habitar, se tornando uma visão, apenas uma visão imaterial e distinta de sua existência cotidiana, mas agora, aquele estupor delirante, enfermo e estranho era sua única existência e a única existência que ela poderia desejar. Joana estava transformada tanto no plano moral, espiritual quanto no físico.

Nos dias que se seguiram, Joana ficara a maior parte do tempo em seu quarto, as roupas mal colocadas sobre o corpo cada vez mais espantosamente magro e pálido. Parecia meditar durante horas, perdida em pensamentos, ouvindo a voz de Ivone em sua cabeça mesmo quando a menina não estava por perto, sentindo seu perfume de criança inocente, contemplando sua sombra obliqua cair sobre os tapetes ou sobre o assoalho frio enquanto caminhava incógnita pelo mosteiro (cada vez mais vazio com os assassinatos), sussurrando repetidamente a palavra vingança até que suas sílabas não fizessem mais sentido e deixassem de significar algo dentro de seu espírito, como se aquela palavra em especial fosse seu versículo próprio, um estado que certamente desafiava qualquer análise laboriosa ou explicação coerente. Não se percebia, mas até mesmo seus sorrisos, agora, tinham como origem a idéia de vingança. E tanto Joana quanto Ivone, que pareciam ser uma só, se vingaram.

Numa sucessão de gritos altos e agudos que irrompiam noites adentro, as freiras foram mortas, os cardeais, os padres e outros cléricos… ouvia – se gritos das gargantas de vultos acorrentados no sótão, corpos emparedados no cimento dos muros, ossos sob as hortas… tudo acontecia de maneira tal que, dentro de pouco, ninguém mais se atrevia a visitar o mosteiro, menos ainda propor qualquer investigação àqueles crimes.

As crianças fugiram, deixando Ivone e Joana reclusas no lugar que se recusavam a abandonar. Viveram por anos assim, sem sair da propriedade, nunca indo além dos carvalhos ao redor do caminho que levava à porta principal, nunca se preocupando com o inverno ou com a umidade excessiva de verão a verão. No salão principal, tudo permanecia intactamente organizado, chão brilhante, nos candelabros jaziam chamas dançantes que iluminavam os olhos das duas que seguiam em sua contemplação até mesmo dos objetos mais triviais do universo que pareciam exercer forte influência sobre suas faculdades imaginativas.

Os quartos exalavam um perfume de flores desconhecidas que encantavam o espírito e, da cozinha, vinha o tilintar impreciso dos talheres, uma melodia melancólica e de mistério que ganhava vida com o vento, mas que nunca, durante anos, fora notada antes.

Joana encontrara em seu coração aquilo que poderia ser o som da paz. Passava os dias entre os cômodos, lia, dormia, olhava a menina caminhar pelo jardim de rosas que finalmente brotaram pela primeira vez, os braços caídos ao lado do corpo, passos lentos através dos tijolos e cabelos esvoaçantes, finos e negros. O tempo passava, 30, 40, 50 anos e lá estavam a menina e a freira, isoladas; os caminhantes e moradores das redondezas diziam ver as torres negras cuspirem fumaças durante algumas noites, uns diziam ver a menina caminhando sozinha perto dos portões durante longas horas.

Por vezes, diziam ver uma criatura anormal, não humana, de cabeça negra, lisa sem orelhas, braços brancos, com botas de veludo amarelado, unhas roídas cobertas de musgos e asas pretas de morcego pairando sobre as rosas e pousando nos carvalhos.  De repente, a criatura sumia, deixando uma poça no lugar onde estava. Voava num ritmo ondulatório, constante, planando distante e, quando se aproximava dos portões, dava botes de serpente com seus olhos avermelhados e pêlos encharcados por um líquido oleoso e escuro.

Alguns parentes de Joana afirmavam tê-la visto caminhando de mãos dadas com o marido morto, vestida com um manto de linho verde de uma peça só, rindo sobre o gelo que parecia se formar somente dentro daqueles domínios, perto das colinas pedregosas que circundavam o mosteiro enquanto a criatura misteriosa ajeitava suas botas de veludo no jardim.

 

Rodrigo Monzani

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