"…, ensine uma maneira, ou mesmo um lugar, de um ódio que supere todo o afeto, um presente que destrua tudo o que veio antes. Tudo isso por causa de uma lata. Não era amor, talvez. Eu fingi nada sentir, mais doeu. – Dói sempre."
, ensine uma maneira, ou mesmo um lugar, de um ódio que supere todo o afeto, um presente que destrua tudo o que veio antes. Tudo isso por causa de uma lata. Não era amor, talvez. Eu fingi nada sentir, mais doeu. Talvez hoje isso doa menos. Tudo porque foi ele, e somente ele quem havia me ensinado a abrir latas. E hoje compreendo. Mas de que vale agora relembrar uma juventude perdida? Não adianta mais, já me convenci disso. Escrevo por querer descobrir um lugar que faça com que eu de novo sinta, ainda que me firam de novo. Eu tinha uma pele tão diferente da minha no momento. Era uma alma diferente. […] Ele me ensinou a abrir latas, e isso era a coisa mais linda que haviam me ensinado. Era linda porque nunca haviam me dito com tanto carinho. Não era pelo abridor, não era pela compota, pelo pêssego, massa de tomate, ervilhas. Era pelos nossos dedos, pelo cheiro da cozinha, pela música e a dificuldade e meus pés descalços. Pela vida e a eternidade daquele momento. Me pergunto sobre a razão pela qual essa crueldade não me permite esquecer. E chegou um dia em que eu gostaria de desaprender a pegar no abridor de latas. Eu estaria distante de mim e arrancaria tudo isso das minhas entranhas. Estou fatigada, mãos frias. Ainda tenho um pouquinho de medo das latas, apesar de terem matado muito da poesia contida nelas; parte das minhas memórias mais importantes. Agora a maioria delas não necessitam de abridor. É um outro sistema, um sistema tão mais fácil, menos dolorido e trabalhoso. Tenho a impressão de que mudei com as latas, e assim como elas, perdi muito da minha poesia; já não corto mais. O novo sistema de vácuo não deixa pontas afiadas, desenhos únicos como outrora, quando era preciso abridor e colher para levantar a tampa e então, só assim, ela lhe revelava seu conteúdo. A tampa agora sai fácil. Ninguém a percebe mais. Não é obstáculo, não requer aprendizado para que seja aberta. Não podemos sequer mais cortar os dedos por acidente. Talvez porque não haja mais ninguém… A cozinha está vazia, os pés cobertos com meias e chinelos, e não existe mais quem nos beije os dedos feridos por uma tampa aberta. Aberta à duras penas, com um velho abridor e sorrisos e concentração. Cheia de poesia, de vida e afeto. Coisas que passaram e que nunca mais terei. Às vezes eu me lembro muito, à fim de esquecer mais depressa, ainda que seja impossível. Talvez seja isso…, talvez seja isso o que chamam viver; ver que as latas não são mais abertas como antes e nunca mais serão. No futuro, não haverá mais abridores e nem pessoa alguma para mostrar como se faz. A mágica está em ensinar, e é impossível ensinar de novo o que já foi aprendido. […]
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