I
Não tenho nada a perder, daqui a pouco vou dar um basta definitivo na minha vidinha sem parasitas, vírus, fungos e meningococos. O negócio agora é bagunçar esse coreto arrumadinho de tubos e lâminas, botar desordem na casa. É minha forma, ainda que um tanto sinistra, de deixar minha marca por onde passei. Gastei décadas nesse insípido cenário branco e esterilizado, onde se coletam temores e esperanças da vida lá fora. Se não posso mudar meu destino, mudarei o dos outros. De desconhecidos outros – para melhor ou para pior. Perdoem-me, tenho que fazer isso.
II
Misturando a amostra da Denise com a do Tácito Luiz… isso, lindo blend, a coloração tá ótima. Nunca se viram e firmam agora um pacto de sangue, quem diria. A hepatite dele passa a ser dela, a anemia dela também é dele. É bacana essa fraternidade, essa solidariedade mórbida me deixa com lágrimas nos olhos. Cada um entrou aqui com uma doença e voltarão os dois com dupla enfermidade. Agora, ao microscópio. Olha como tá de micose essa lâmina, Deus do céu. Mas como é difícil de tratar mesmo, digo no diagnóstico que não tem nada – assim o velhinho não perde tempo nem dinheiro tentando à toa acabar com esses fungos. Parece tão boa gente, não merece essa esfrega. Além do mais, disso ele não vai morrer mesmo.
III
Carcinoma hepatocelular, isso já deve estar em fase de metástase brava… deixa eu ver no facebook o perfil desse infeliz. Festa, churrasco, pescaria, ê vidão… deve enxugar uma cana lascada pra ter o fígado nesse estado. O laudo vai desenganar o cara, e não vai ter tratamento que dê jeito com a situação nesse pé. Tantos amigos e solicitações de amizade, que judiação. Não sou eu que vou estragar o seu restinho de tempo por aqui. Então vamos lá, meu camarada… “Aspecto benigno, não observados indícios de neoplasia”. Só aquele alívio na hora de abrir o envelope já é meio caminho pra melhorar muito o ânimo desse coitado. De notícia ruim já chega o Jornal Nacional. Maravilha, perfeito… agora o face… vou pedir pra me adicionar. Pode até não me aceitar como amigo, mas com certeza sou o melhor que ele já teve.
IV
Quintana Rubininsky… tinha um escroto no colégio com esse sobrenome. Se for parente, aí vai a maldição – tasco-lhe um positivo para HIV, tá bom pra você, querido? Vida louca, sem juízo dos infernos, se não tivesse má conduta o seu urologista não pediria o teste para afastar a suspeita. Aí vai, com toda a minha gratidão. É preciso que entenda que não é por mal, só estou fazendo minha parte pra tornar o mundo um lugar melhor.
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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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