Esse era o quarto dele. Ainda é, quando acontece de vir até aqui ver essa velha que Deus insiste em não querer levar. Rústico desse jeito, pé direito alto e esse exagero de janelas. Ele, menino, ficava brincando de acender e apagar a luz, com esse interruptor do lado da cama. Falava de cinema, gostava disso. Godard, Fellini, Antonioni, gente assim. Tá tudo como era, só a lâmpada que desde 1965 trocamos umas vezes. Mas não muitas, umas quatro. Pra você ver como o cômodo de lá pra cá ficou mesmo abandonado. Certa ocasião, em campanha, Antônio Carlos ficou hospedado aqui. De noite, nessa cama, ele ficava pensando. Tô falando dele, não do Antonio Carlos.
O vidro de Hellmann’s aí em cima do criado-mudo tem a camaleoa que um dia ele raptou numa moita da pracinha e resolveu conservar no formol. Tá mais pra iguana, porque camaleão é bicho que não tem na Bahia. Não se desfez do pobre, disse que dava sorte. Mas também não levou pro Rio. Então fica aí, fazer o quê.
Eu, você sabe, é de casa pra igreja e da igreja pra casa. E quando estou no meu canto, é o dia inteirinho abrindo a porta a quem bate pra conhecer o lugar onde ele nasceu. Não é difícil chegar carro apinhado de gente, mas nunca falta uma cajuína geladinha com tapioca pra servir.
Sei dizer que, com aquela história toda de misturar Chacrinha, Vicente Celestino, um tal de Oswald de Andrade, Beatles, parangolé, ditadura e o que mais estivesse sob o sol nas bancas de revista, ele foi indo e ficando conhecido, nada no bolso ou nas mãos. Pelo menos no começo, antes das câmeras, porque depois o bolso não ficou mais vazio, muito pelo contrário. Mas nem por isso o deixei de fora das minhas orações, achava aquilo tudo um endoidamento passageiro, coisa de cabeludo de um tempo conturbado. Quando eu tinha, sei lá, uns sessenta e ele uns vinte ou um pouco mais, cantando aquela música das Cardinales bonitas.
O irmão mais velho dele mexia com pirógrafo, fazia coisas em madeira pra turista levar de lembrança da cidade. Esse meu menino vive até hoje comigo. Daqui a pouco ele chega e eu te apresento. Não é a cara dele, como a irmã, mas também não é o avesso do avesso do avesso do avesso.
Numa tarde assim, que nem essa de hoje, ele chegou pro irmão, enrolando os caracóis dos cabelos, e falou: "Eu vou escrever aqui uma coisa sonora e linda, tão sonora e linda que é bem capaz de dar filme ou quem sabe música um dia, quando daqui partir pro sul. E é bom que escreva a fogo pra ser difícil de esquecer.
E grafou com o pirógrafo, numa letra um pouco trêmula, uma frase na cuia do berimbau: "Existirmos, a que será que se destina?".
Acontece que hoje, a bem dizer, ele está sabe Deus onde, segue de hotel em hotel, entende como é? Ao léo e sob o mesmo sol nas bancas de revista, só que agora estampando as capas. Ele e a irmã, tão longe e tão daqui, continuam meninos novos correndo no quintal, na minha teimosia de mãe velha. Penso nele, espero tocar o telefone, olho pro retrato dele da época do exílio. E vamos vivendo, com a bênção de Santo Amaro. Quando a saudade dói muito, uma canção me consola.
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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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