A chuva mansa e criadeira me levou em correnteza à releitura de Herman Hesse, Machado e Florbela Espanca. Às vezes em pingos fortes, açoitando minhas janelas, chegava lembrando o medo das cucas e lobisomens, sentimento adormecido desde a época em que os lobisomens e as cucas existiam aqui de fato.
Serena mas decidida, faz serviço caprichoso de empenar as madeiras, traga os barcos de papel e os de verdade, encharca por onde passa. Tinge de musgo as pedras, provoca o estrago que quer. Perseverante, dura bem mais que os dois volumes capa-dura do Machado, do meu “Sidarta” já em frangalhos e da fininha antologia da Florbela. Finda a faina literária, me faz separar as roupas em uso das que não servem, erguer castelos de cartas, deletar e-mails lidos e um mundo de outras tarefas que jamais levaria adiante se sol houvesse, por tímido que fosse.
O chumbo do céu chuvoso, convite mais que aceitável ao nada pra se fazer. Céu que me ilha e me avisa que é inútil tentar sair, tão cedo não irá ceder esse concerto de trovões. E dá-lhe água despencando.
Fechadas as portas que dão pra fora, a chuva me ordena a olhar pra dentro, para o que havia de seco e há muito pedia uma rega farta e recompensadora. Ao longo desses dias tão iguais, ela foi moldando minha carcaça no aconchego da poltrona, me trouxe de volta ao piano que há anos nem abria. E reparei naquele Mi desafinado desde nem sei quando. A chuva que também é uma nota só e que marcou novembro em Andante Cantabile, atravessou dezembro em Allegro Moderato e ao, que tudo indica, encerrará janeiro em Presto Molto Vivace.
De garoa a tempestade, a chuva me botou em posição de lótus, com a espinha ereta e o coração tranqüilo como o Walter Franco naquele disco anos 70, a Revolver fantasmas. Me deixou menos urbano e instalou narina adentro o pasto e o estrume de vaca, mais raros e intraduzíveis que o mais fino dos Chanel. A chuva tem sido tamanha que borra as letras dos livros mofando nessas estantes. Não autorizou a fazer nada do que havia planejado, mas me mostrou que as urgências não eram assim tão urgentes. Que espera é maturação, que tempo tinha de haver pra escutar sua cantilena.
Deito, durmo e sonho aos pingos, enfronhado nos torós. Enquanto os móveis de casa bóiam na enchente insana, eu vazo por todos os poros, choro água da borrasca, viro bica como tudo à minha volta.
E o barulho da chuva, que me trouxe o pesadelo, é o mesmo que me desperta. Vejo o bolor nos rejuntes e cogumelos multicores fermentando no quintal. Ela, que impacienta as crianças e apascenta os velhos. A chuva que cai sobre os recém-defuntos, coada por 7 palmos de terra. Criando adubo, abrindo poças e transbordando poços nas chácaras que se estendem pra além do alcance da vista. A chuva que não pára e que, reinando feito déspota, quer que o assunto seja ela e nada mais.
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