– por Rodrigo Monzani
“O que há é só o mundo verdadeiro[…], só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade esta aí.”
Fernando Pessoa
Os dias que se seguiram à morte da avó Clarice se condensariam em esparsos momentos estranhos e fragmentados, mas Isabel se lembraria deles até o fim de sua vida.
Até mesmo os objetos do velório, artefatos inesquecíveis de sua segunda infância (velas brancas com aroma de camomila, candelabros novos rodeados por pedras de cânfora, os lenços padronizados da funerária com passagens da Bíblia, a decoração discreta e puída da casa) assim como as pessoas que conheceu, as que reviu, os amigos que nunca apareciam, alguns dos comentários desajeitados do tio Jonas (“- Lamentamos muito, mas há males que trazem o bem. “), as bebidas coloridas, as crianças menores que não entendiam nada e que choravam com a atmosfera opressora até mesmo para elas, os trajes negros e elegantes dos Stevens (a melhor amiga Márcia de vestido liso, cabelos presos para trás e um discreto chapéu preto), a comida sufocante… tudo se encaixara como num mosaico, de maneira indelével em seu cérebro e em seu nervo ótico, bastando que Isabel fechasse os olhos para que aquelas imagens lhe voltassem claras como um dia de Janeiro, repletas de interpretações possíveis e acompanhadas de devaneios que rapidamente tomaram – lhe da alma a força de um verdadeiro e exasperante estado de espírito, tão forte quanto sua própria personalidade.
“- Pare com isso, Gabriel” – disse Jonas num tom ameaçador, empurrando o menino com a perna. Assustado, o pequeno começou a chorar entre soluços e ruídos ainda mais irritantes que os do brinquedo. Isabel aproveitou o incidente para fugir da roda sem ser notada, despenteando o cabelo do menino com um movimento carinhoso.
“- Hey Gabriel, você sabia que o Lucker Man tem um rádio igual ao seu?” – ela disse olhando – lhe nos olhos úmidos e quentes, o suficiente para fazer com que ele levantasse o rádio acima da cabeça e o jogasse com força no chão, soltando gritos terríveis, agora de irritação.
“- Ele não gosta do Lucker Man.” – a mãe de Gabriel, Adelaide, murmurou num sorriso enquanto se abaixava para resgatá- lo. “- Lucker Man fede!” – ele gritava esmurrando as costas da mãe. Alguns minutos depois, lá estava ele correndo entre as pernas das pessoas com alguns salgadinhos nas mãos e a minúscula gravata desatada caindo pelo colarinho de sua camisa social.
Márcia, que parecia não perceber as investidas de um enorme marimbondo voando ruidosamente ao redor de seu chapéu, exibia uma expressão fechada e mastigava muito lentamente um pedaço do sanduíche de atum que a mãe lhe preparara, sentada na cozinha, encarapitada numa banqueta debaixo do armário embutido, indiferente às primas pequenas de Isabel que iam e vinham jogar seus copos de plástico coloridos no lixo e na pia.
Do outro lado da sala, as mulheres se abanavam com seus leques negros perto das janelas. Algumas conversavam sentadas em volta do balcão de madeira ao lado do aquário, utilizado como mesa para as bebidas e para as saladas de atum servidas com pequenos barquinhos comestíveis ao redor do prato, feitos de brócolis.
“- Clarice passou por muita coisa durante todos estes anos. Vocês sabem o quanto sua vida era sofrida… não estou dizendo que Mic tenha sido um mau marido, mas… vocês sabem o quanto foi difícil para ela…” – a tia Camilla, apesar de seu tom de voz sussurrante e praticamente inaudível era a mais falante. Segurava, dispersa entre os dedos, um cigarro alongado e tecia seus comentários olhando no vidro da janela o reflexo do caixão no centro da sala.
“- Talvez tenha sido melhor assim, a morte lhe veio como um refúgio” – disse Tabitha com seus cabelos longos encaracolados, linda como uma das primeiras Bond´s Girls. Isabel não a reconhecera a princípio. Estava mudada, colocara lentes de contato verdes e estava bem mais magra do que há três anos quando visitara os O´Neall num dos churrascos de aniversário de alguém.
“- Willtherford, eu acho. Padre maluco.” – despejou Alicia, a cabelereira do mesmo salão de Jen.
“- Mas morrer desse jeito, imaginem… caindo da janela… o que ela fazia lá?” – Ruth disse, inclinando o corpo na poltrona ao lado do balcão com um copo de whisky na mão. Sua pergunta fora intencionalmente venenosa, inquisitiva. Isabel a conhecia bem. Ruth Randelle, professora aposentada da Falcan, amiga querida de sua avó que, como um passe de mágica, simplesmente sumira nos últimos anos. Tudo relacionado à morte adquiria um terror fantasmático quando o assunto era conduzido por Ruth, que se encarregava de injetar sua dose fatal de mistério e crime em casos como aquele, fato que arrancava gargalhadas zombeteiras apenas de seu marido, antes do infarte fatal há um ano.
“- Não diziam que ela estava paralisada? Como ela conseguiu andar até a janela?” – Isabel não identificou a direção da voz, mas a reconheceu: Nana Duborg, esposa do vizinho de seu pai. Nana não era nem de perto a combinação de alegria e charme incontestáveis que era seu marido. Diziam que ele havia se casado por dinheiro, mas a verdade era que Nana ficaria esperando a vida toda pela herança de seu pai, um milionário do ramo de imóveis que seguia firme em seus noventa e tantos anos de saúde, entremeados por jogos de pôquer com os amigos e visitas à “casas de massagem” da região.
“- Dizem que se matou… um verdadeiro horror.” – respondeu Ruth com seu tom de mistério indefectível.
“- Que nem aquele padre, no mesmo dia, como era o nome dele mesmo…” – Olga Farrish perguntou entre os cochichos das outras, alarmadas pelo tom da senhora Randelle.
“- Whitemberg, eu acho. Padre maluco.” – disse Alicia ajeitando os cabelos no reflexo do armário espelhado no canto da sala.
“- Clarice chorava muito… é uma pena que nasçamos sabendo apenas a chorar e muitas vezes a vida não nos ensine a rir. Espero que ao lado de Deus ela seja feliz.”
“- Ora, Deus não ri. Demonstaria desprezo. Vocês sabem, nós só rimos quando ridicularizamos alguém…”
“- Não fale besteira, Ruth, os bebês riem e nem sabem o que é desprezo…” – foi o último comentário que Isabel ouviria antes de subir a passos rápidos pela escada, sem ser percebida. Estranhamente, aquela conversa ficaria gravada em sua memória e lhe voltava como um trauma de infância (o que, de certa maneira, não deixava de ser) a cada noite mal dormida.
Ainda ouvia os murmúrios vindos da sala e os tilintares ruidosos e irritantes dos talheres. A cabeça começara a doer como um aranhão e ela pensou que vomitaria o chá naquele mesmo instante. “- Depurativos naturais…” – ela se lembrou da expressão de alguma de suas tias, contente em lhe passar a jarra de chá. Não vomitou e somente após alguns minutos percebeu o quanto a chão estava frio. Se levantou devagar, olhando incógnita pelo espelho para os olhos avermelhados e a fita desamarrada nos cabelos, então, as imagens do que havia acontecido e que plasticavam a morte da avó começaram a desfilar naquele espelho: sua corrida ofegante até a boneca preferida caída no jardim e, quando a alcançou, olhou para cima num ângulo obtuso, direto para a janela do quarto de Mic e Clarice. Eles discutiam, gesticulavam até o avô empurrar Clarice direto através do vidro, o corpo caindo desajeitado num baque surdo sobre a grama, a um metro de Isabel. Da conversa que tivera com o avô, não se lembrava de nada, como se tudo tivesse se perdido num terreno arenoso e movediço dentro dela, irreal.
“-… e o padre se matou na mesma noite em que falou com Clarice?” – perguntou uma voz lépida, fina.
“- Sim, com um tiro na cabeça. Dizem que eles tinham um caso e o velho Mic descobriu.” – som metálico dos candelabros, passos ritmados no chão contra o tom de confidência da segunda voz.
“- Ora, cale a boca… padres não têm casos com velhas casadas. Como era mesmo o nome daquele padre… Willtherford… padre maluco…” – e os vultos se foram sombra adentro por debaixo da porta.
Isabel encontrou um copo de plástico com escovas, creme dental e um vidro com um rótulo desbotado e grudento: …razina era o que sobrara da anotação feita à mão com caneta vermelha, colada no frasco. Ela balançou o vidro perto do ouvido. Havia um comprimido azulado, mas ela não notou a cor. Colocou – o na boca e o engoliu com a ajuda de uma fina lâmina de água fria da torneira. Se quisesse dormir, teria que descer e procurar por mais alguma coisa no balcão da cozinha (algum tranquilizante, por acaso) e embora a idéia de descer lhe parecesse aterrorizante, ela sabia que tinha que fazer aquilo.
Caminhou descompassadamente pelo corredor inóspito dentro dos cones de luz amarelados, arrastando os pés sobre os tapetes acima da madeira fria quando alguém (ela nunca se lembraria de quem, exatamente) empertigou a cabeça na escada segurando um prato de salada.
“- Venha Isabel, seu avô quer vê – la no quarto, a sós.” – a voz misteriosa a pegou pela mão e a levou ao terceiro andar, no quarto de Mic. A janela quebrada por onde Clarice havia sido assassinada jazia coberta com plásticos azulados, retumbantes com o vento. A garota percebeu que ele estava sentado sobre um lençol estendido no batente, olhos estáticos atrás dos óculos de lentes grossas.
“- Precisamos conversar, Isabel.”
“- Preciso de um remédio” – ela disse.
“- O que você tomou, querida?”
“- Não sei, acho que foi um tranquilizante, vovô.”
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