Simplicíssimo

Âncora de Sanidade – parte 1

O sorriso brotava-lhe do rosto. Não um sorriso largo e gozador, nem tão pouco o riso dos tolos, mas o sorriso da felicidade, da completa liberdade, da solidão repleta de belos pensamentos mesmo entre a multidão que transitava naquele horário de almoço. Seguia a passos, firme e rápido, cabeça erguida e olhos travados no horizonte. De repente toma outro rumo e agarra o braço do homem que aguarda para atravessar a rua. O conduz até o outro lado e ao agradecimento do moço responde com gentil aceno.

Vaga quieto até encontrar o restaurante sujo onde almoça. Senta-se e aguarda que venham retirar a toalha imunda. Observa as paredes brancas da cal recém passada e lembra da última semana quando tinha mostrado ao dono as inúmeras marcas de mofo espalhadas pela parede. “Pelo menos cobriu o mofo”, pensa. Levanta-se e bate as mãos para lembrar seu amigo, o dono do local, da toalha da mesa. Este imediatamente leva outra toalha e lhe entrega para continuar atendendo os demais usuários de seu estabelecimento. De toalha limpa, aguarda o prato de comida calmamente enquanto observa as outras pessoas devorando a comida sem ao menos sentir-lhe o sabor, aguçando o paladar faminto, ou o cheiro quente e salgado, impregnando as narinas. Nisso verifica que seu prato já está a sua frente sem que tenha notado. Ao terminar, limpa sua mesa deixando-a pronta para ser utilizada por outro que aguarda na fila. O lugar é o único que muitas pessoas podem pagar com seus míseros trocados recebidos de árdua luta diária em trabalhos eventuais ou não muito dignos de maiores comentários.

Seu amigo, já foi seu sócio em outro negócio e hoje sobrevive do pouco que a mulher sabia fazer: cozinhar. Ele não teve tanta sorte, pelo menos de conseguir casar-se antes da tragédia que se abateu sobre os dois. Ajuda a limpar mais algumas mesas, servir outras e logo percebe o relógio adiantando-se e solicitando seu imediato retorno ao trabalho. Troca um aceno com o amigo e outros conhecidos de restaurante e sai da mesma maneira que entrou.

Enquanto trabalha ou perambula entre os homens, seus pensamentos divagam no espaço e o tempo esvai-se. O dia passa e o retorno para casa tem de ser feito. Trocou de serviço pelo menos 5 vezes no último ano, mas parece ter encontrado o trabalho ideal para conseguir manter a sanidade. Foi manobrista, estafeta, auxiliar de escritório, garçom e, por fim, soldador. Tem uma rotina de trabalho pesado, com uma carga de 10 horas por dia. O cansaço físico após o serviço facilita para o corpo adormecer. Esse é o grande motivo que o fez permanecer nesse trabalho já por 4 meses. O salário? Não ousa dizer, mas sabe que é o mínimo suficiente para atender as suas necessidades básicas. Para ele isso é uma mera forma de manter-se vivo e saudável e, talvez por isso, sinta que algo ou alguém lhe faça falta. Já pensou em comprar uma bola de basquete e conversar com ela, vestir uma vassoura de ponta-cabeça com roupas de mulher e tê-la como companhia, gravar uma fita cassete inteira com urros e sussurros e colocá-la a tocar num equipamento auto-reverse, comprar uma corda, adquirir um revólver, fazer curso de jiu-jitsu e sair por aí brigando com todo mundo. Seu cérebro está equilibrado, numa corda bamba, mas está. Pelo menos enquanto mantiver o mínimo razoável de lucidez pode reviver as lembranças de outras épocas amarradas ao seu nome escrito na parede, em letras garrafais.

Mauro Rodrigues

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