Simplicíssimo

A Matadinha Padrão

Mais um belo trabalho executado. Homem rude, com a idade um pouco avançada, rugas marcando sua face calejada do sol e do trabalho árduo da campanha. Trocou de atividade. Nos últimos tempos passou a auxiliar casais com problemas, é o psicólogo do lugarejo. Mas como não se pode utilizar esse título profissional sem formação, acabou se autodenominando consultor para assuntos sentimentais, ou velho conselheiro como os demais o chamam.

Com nome de gaudério e fama de conquistador, Juvêncio Flores passa seus dias escutando conversa dos outros, literalmente. Desde seus parentes até desconhecidos vêm procurá-lo para conversar, trocar uma idéia – como dizem. Trazem problemas, dúvidas, incertezas e levam consigo, na pior das hipóteses, um pouco de esperança. Seu Juvêncio, como é lembrado pelos arredores, ficou famoso ao publicar, no jornal regional, um obituário singular para sua esposa. Após 30 anos de casamento, ele desafiava qualquer pessoa, que conhecesse ele e sua mulher, a lembrar-se de alguma desavença entre os dois, por mínima que fosse. Ao final do obituário agradecia o companheirismo da mesma e, em letras destacadas, ressaltava: "Toda nossa felicidade foi fruto da Matadinha Padrão".

Toda a região quis saber do que se tratava. Tomaram, no entanto, a decisão mais lógica e transformaram a frase em jargão das piadinhas que eram lançadas ao, já senhor de 50 anos, Juvêncio. Casado desde os 20 anos, nunca deixara de ir a carreiras, jogatinas e bailes. Sempre que possível, fazia-se acompanhar da esposa. Mas não raramente era visto desacompanhado. Sua vida, agora solitária, ia passando como o Minuano – seguindo seu curso, simplesmente.

Um mês após o enterro tudo mudaria. Uma reviravolta em sua pacata vida. Foi procurado por um grande fazendeiro da região. Recebeu-o com pompa, ao menos a que se faz possível numa casa simples da zona rural. Para sua surpresa, o homem ansiava por conselhos. Disse-lhe que ao avistar o obituário de sua esposa – "… e que Deus a tenha" – passou a pensar em procurá-lo. Ficara com essa idéia fixa. Precisava entender como conseguira viver 30 anos com a mesma mulher em perfeita sintonia ou se tudo aquilo não passava de uma brincadeira. Encarando-o firmemente, Juvêncio fez uma confirmação com a cabeça. O homem forte e altivo desfez-se em lágrimas. Berrava que nem bezerro desmamado – como o próprio Juvêncio me descreveria mais tarde.

Somente após um gole de pinga, daquela que arde até na alma do xiru, o fazendeiro conseguiu controlar-se e começou a relatar suas desavenças com a esposa. Conheceram-se na juventude, apaixonaram-se e logo perceberam que a união definitiva era o seu legado. Adiaram todo o cerimonial para que ele pudesse cumprir seu dever de fidalgo e formar-se em algum curso importante na capital. Mantiveram o relacionamento durante todo seu período de afastamento. Sem contratempos foram planejando, sonhando com os olhos abertos. O amor os acompanharia durante toda a jornada. Agora que estavam casados, tudo mudara. Sua esposa não tem mais paciência, interpreta tudo que diz, chateia-se com facilidade, não sorri mais com amabilidade e nem cozinhar – algo que adorava – ela quer. Confessava-se com medo de dirigir-lhe a palavra. Suas brigas não acontecem, ao invés disso, ela chora. Ele desespera-se.

O choro volta, mais forte que anteriormente.

Juvêncio Flores – consultor – faz sua primeira receita, dá sua primeira consulta – algo que se tornaria rotina. Desenha umas letras no papel, já que pouco sabe da arte de escrever, e dá ao fazendeiro. Fala firme com ele, olho no olho, e dá-lhe um tapa nas costas. "Vá, homem! Cumpre o teu papel". O fazendeiro sai, cerca de 30 minutos após chegar. Quieto, sério e rápido. Duas semanas depois, à noite, uma junta de bois nova e forte é deixada na mangueira do sítio. Juvêncio, durante o dia recebe o fazendeiro que lhe agradece a consulta e nega ser o dono dos bois, embora a marca dos animais o incriminasse. Depois dos agradecimentos, um novo homem, trata de espalhar a fama de psic… digo, consultor sentimental de Seu Juvêncio.

No papel? No papel dizia: "Matadinha padrão", só isso.

Mauro Rodrigues

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