O grito. Novamente a mulher urrava. Um som estridente e com um timbre que mesmo em baixo volume não passaria despercebido. No entanto apenas eu aguardava a polícia chegar no prédio e as grades que me seguravam em frente ao elevador eram fortes o suficiente para não ficar tentando alguma idiotice. O corredor semi-escurecido tornava o ambiente ainda mais sombrio e ameaçador. Num vão de cerca de 15 metros aquele casal tinha se mudado após a compra dos quatro apartamentos do andar, onde três já estavam vazios e sem morador há vários anos. Antes de chegarem instalaram as grades que deixaram o andar isolado do resto do prédio. Somente as escadas e o elevador eram livres para trafegar.
Nada que fosse fora do comum numa sociedade que se coloca atrás das grades para fugir da violência urbana crescente. Hoje, porém, os gritos tornaram a noite insuportável e a ligação para a polícia inevitável. Os bombeiros também vinham. Já podia escutar a sirene soando alto pela janela. O medo que senti no início sumiu após tocar inúmeras vezes à campainha e ninguém sair do apartamento ou sequer emitir algum som de comunicação aos meus apelos. Só os gritos, os gritos…
Os bombeiros trouxeram um pé de cabra que não arromba o tipo de construção implantada na porta. O jeito foi usar uma serra elétrica que possuem. Saio enquanto eles trabalham. O grito vem novamente… Mesmo sob o ruído da serra, retalhando o aço da grade, o silêncio imperou por alguns instantes mesmo entre aqueles homens acostumados ao perigo.
Um deles pegou o celular e teclou freneticamente. Após algumas palavras emitiu o anúncio: "Ele está vindo!" e todos continuaram o trabalho mais aliviados. Após alguns minutos de contratempos o arrombamento foi efetuado e as luzes do corredor foram completamente desligadas. A pouca iluminação, proveniente da janela ao final do corredor, criava espectros, vultos de pessoas que se moviam em câmara lenta pelos poucos metros que poderiam ser varridos em segundos, se quisessem. Fui movendo meu corpo entre os seus, na onda de homens que invadiam o local até ultrapassarmos a porta da esquerda, de onde provinham os gritos. Um dos guardas arrastou-me para alguns metros adiante da porta, enquanto seus companheiros arrombavam mais esta. Porta aberta, som seco de madeira estilhaçada ecoando no ar e um vulto sobressai-se entre os demais como em revoada para dentro do cômodo. Enquanto pisquei os olhos, tentando forçá-los a acostumarem-se com a escuridão, o mesmo vulto saiu com uma mulher nua em seus braços. Devia ter mais de dois metros de altura e providenciava algumas roupas para cobri-la. Parecia corcunda e deslizou por entre a multidão de policiais e bombeiros até alcançar as escadas. Poucos o seguiram, incluindo eu.
Ao chegar no acesso ao teto encontrou-o fechado e quando ia forçá-lo para arrombar ofereci a chave que possuía. Lançou-me um olhar e pude perceber sua idade superior aos 40 anos com certeza, e um semblante marcado que poderia aparentar ainda mais, com rugas profundas na testa e na face.
Largou a mulher no chão. Começou a rezar ajoelhado ao seu lado e os outros três policiais que o seguiam fizeram o mesmo. Instintivamente fiquei na mesma posição que eles, mas não entendia uma só palavra do que rezava aquele homem. Devia ser em latim, deduzi pelas liturgias da igreja católica.
A mulher dormia profundamente e dava sobressaltos vez por outra e tentava em vão gritar. Inchava seu peito de ar mas sua voz era abafada. Perdi a conta do número de vezes que repetiu esse gesto e do ar quente que brotava de seus pulmões e inundava o ambiente gélido da madrugada sem nem um som associado.
O tempo jorrou por entre meus dedos entrelaçados àquela fé que nem lembrava mais como senti-la. Percebia o quão tensa era a situação de tal forma que não podia ignorar e abandonar o local. De repente, o que parecia mais uma tentativa de grito com o proposital erguimento do quadril à frente como se fizesse abdominais com as pernas presas, foi surpreendente. A moça saltou sobre o círculo que fazíamos ao seu redor, sem que tivéssemos notado e jogou-se do prédio.
Sete andares mais abaixo havia um corpo estatelado no meio da rua e nada fiz para impedir, pensei naquele momento.
Os demais levantaram-se vagarosamente e resignados com o ocorrido. Eu tentava indignar-me, mas sequer conseguia ficar de pé, meus joelhos doíam e as pernas tinham perdido todo o vigor necessário para tal. Apoiado por amigos fortuitos, de atividades duvidosas, comecei a duvidar dos profissionais que me cercavam e de todos os acontecimentos que presenciara.
– Anjo, é assim que me chamam.
Estendeu-me a mão e mais uma vez agi instintivamente apertando a mão daquele homem que confirmei ter mais de 2 metros de altura. Convidou-me a acompanhá-los até o andar de baixo onde poucos policiais vigiavam o corredor e mantinham o local intocável. Poucas palavras e muitos olhares e estávamos dentro do apartamento.
O cheiro forte que preencheu meus pulmões somado ao efeito visual de um homem enforcado com as mãos agarradas a uma espada que rasgava sua barriga fazendo seus órgãos internos saltarem para fora jogou-me contra o chão e a sensação de vômito não se concretizou pelo desgaste que já me consumira por inteiro.
– Aqui a moça estava deitada na mesma posição que você a viu lá encima. Emitia os chamados, drogada e seduzida pelas obscenidades humanas levadas ao extremo do outro mundo.
Sua voz solene, não permitiu qualquer interrupção. Continuou.
– Quando meus colegas chegaram e escutaram o grito me deram a confirmação pelo telefone e rumei para cá o mais rápido que pude. Tínhamos certeza do que se tratava e as confirmações vieram ao entrarmos no apartamento e encontrar a cena conforme você a vê. Meu novo amigo, digo-lhe com certeza. Não existem coincidências. Se você aqui está é porque era uma força necessária para conseguirmos o êxito aqui alcançado.
– Mas que êxito? Um homem morto sabe-se lá como e uma mulher suicida que salta de um prédio de sete andares? Retruquei em seguida. Ele continuou.
– Amigo, esse casal buscava comunhão com o demônio, diabo, coisa-ruim ou seja o nome que você quiser dar ao mal. Só que te digo: não existe essa figura macabra a qual chamam de Satanás. Todo o mal vem de Deus. Ao criar o mundo Ele gerou a harmonia completa, que hoje chamam de Ecologia. Todos os seres viviam em comunhão e tinham tudo do que precisavam. No entanto, Deus permitiu que um casal saísse de seus domínios celestiais e viesse à Terra dos homens plantar as sementes do desejo, discórdia, vingança e fizessem dos homens os senhores desse mundo, desequilibrando as forças que mantinham a harmonia. Ele não interviu e permitiu que o homem usasse e abusasse do seu livre arbítrio sobre si e os demais seres desse mundo fazendo progressos e descobertas sobre o próprio cosmo.
– Mas do que você está falando?
– Hoje os homens afastaram-se tanto de Deus que crêem ainda mais em sua existência, seja como bem ou como mal. Buscam encarná-lo e querem sê-lo em corpo e espírito. Isso é o que presenciamos aqui. Eu já fui padre católico, mas as revelações que tive na minha vida de meditação e trabalho litúrgico me trouxeram a esta encruzilhada onde meus conhecimentos não são úteis a nenhuma religião, somente à polícia em casos como este. Seja bem vindo ao nosso grupo. Diga-nos seu nome, quando quiser.
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