Simplicíssimo

Instruções para dar corda no relógio

 

 

 

 

 


Após diversas colaborações esporádicas – bem sabe o nosso querido amigo e editor Rafael – tomo como desafio e como convite que muito me honra, manter uma coluna fixa nesta casa eletrônica que cada vez cumpre mais seu papel na veiculação da palavra escrita em todas as suas formas. O conteúdo da minha coluna, será quase que em sua totalidade, formado por textos em ficção. Mas eventuais devaneios, pretensos ensaios e considerações enlouquecidas de toda ordem serão constantemente anexados, também, em um constante ir e vir, transitando entre o real e o onírico. O que justifica, de certa maneira, o título da minha coluna INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA NO RELÓGIO, nome de um texto do deus Julio Cortázar, meu escritor supremo, e cujo estilo acaba norteando de certa maneira minha busca na literatura. Este texto, para quem interessar possa [e eu espero que interesse a muitos, porque já indiquei Cortazar a muitos desavisados, e todos, eu disse todos, agradeceram efusivamente por tal indicação, porque Cortázar é garantia do mais absoluto deleito e deslumbre em literatura.], faz parte do ótimo livro Histórias de Cronópios y de Famas. Começando, transcrevo, então, os pequenos textos de Cortázar, seguidos pelo meu texto Três Lados.


Preâmbulo às Instruções para dar corda no relógio
Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você – eles não sabem, o terrível é que eles não sabem – dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perde-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.


Instruções para dar corda ao Relógio
"Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as velas do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte, se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada."


TRÊS LADOS.


1. Ana Cristina se desentendeu com o chefe naquele dia. Uma bobagem qualquer dita por ele e com a qual ela não concordou. Uma risadinha, mais ou menos sarcástica – e sarcasmo não era uma das suas principais características – e ele disse que era melhor ela tomar cuidado. Não devia se envolver tanto no que não lhe dizia respeito, não era sua função, foi o que ele falou. Não deu muita importância para aquela frase até o final do expediente; agora, em casa, no entanto, era como uma dor de cabeça a latejar com a mesma constância das risadas enlatadas que se repetiam no programa de televisão. Nem prestava atenção à trama, ainda que isto não fosse muito importante: o mesmo grupo de amigos vagabundos, fúteis e com dinheiro se encontrando todos os dias para se encharcar de café em um barzinho com sofá, enquanto soltavam nove piadas a cada dez frases inteiras. Nada a ver com a sua vida. Um escape, portanto? Ana Cristina não se preocupava muito com isto. A cabeça, lotada de outras preocupações (o irmão doente, a mãe longe, para quem tinha de enviar dinheiro a cada mês, o ex-namorado, um completo imbecil, o emprego de merda, aquele chefe tarado…) que deveriam ser simplesmente afugentadas com o que estivesse passando na televisão. Sim, definitivamente, um escape.
Um velho burro, aquele. Sem visão alguma! Que se afunde na merda ele e aquela empresa dos infernos! Com todos aqueles escritores medíocres, juntos. Não vou me meter mais a dar opinião…
Preparou o banho, meticulosa na cerimônia com a qual se presenteava algumas vezes por semanas, derramando um pouco dos sais que ainda restavam. Na televisão da sala, as mesmas risadas. Preciso parar de ver esta imbecilidade. Ao lado da banheira, a pilha de livros que editavam e que costumavam ser sua leitura durante a imersão naquela água espumante. Naquela noite não leu pegou nenhum deles para ler. Não agüentava mais o lugar-comum daqueles contratados metidos a Cortázar. Sacou o chuveirinho e se masturbou com a água quente enquanto se lembrava daquele escritorzinho em começo de carreira – sim, olhara para ela quando passara! Lógico que pensava safadezas… – e a bosta de livro que ele não haveria de escrever para fazer a vontade do editor todo poderoso e estúpido.

2. – Por que tu não quis jantar? – Não estou com fome, já falei, mulher. Só quero dormir. Aquela putinha me paga. Acha que pode se meter onde não deve. Secretária de merda. Só não a coloco para a rua porque é uma gostosa. Vou passar ela, ainda. – Tu vai ficar com a luz acesa a noite inteira? – Quero ler este último que vocês publicaram… Muito parecido com aquele outro, por sinal, não acha? – É, mas o próximo vai ser diferente… Se não me decepcionar como todos os outros. Bando de amadores. Não sei onde estou com a cabeça para publicar estes digitadores diletantes. Tem que levar pelo cabresto, senão acham que podem fazer o que quiserem. Mas este vai me dar o que eu quero. – Diferente, como? Quem é ele? Não é mais um destes guris que escrevem na Internet, né? Vocês estão com o catálogo cheio destes… – Não, depois tu vê. Este é muito bom, escreve bem. Só precisa de uma certa orientação. Metido a fazer drama psicológico, estas coisas, tu sabe. Quando tudo o que o público quer é ler putaria, esta gurizada fica achando que podem ser Dostoievski! Imitadores de Bukówski, é por isto que clama o público! E se eles querem safadeza, eu vou dar safadeza para eles… Safada! Vou comer aquela putinha, ainda!

3. Quando eu entrei na sala do meu editor, ele perguntou por que eu não havia incluído nenhuma cena de sexo no meu livro. Eu falei que não achava necessário, simplesmente. Nenhum motivo especial. Ele não se deu por satisfeito, começou a argumentar acerca da necessidade de inclusão de alguma cena mais tórrida, um palavrão que fosse. Achou que a minha cena subentendida, que termina em um beijo e recomeça a partir da manhã era excessivamente pudica, e que tal narrativa clamava por detalhes mais escabrosos. Como eu não me abalava e mantinha a minha postura em relação ao texto, e como ele havia sido previamente aprovado, em reuniões anteriores, me mantive quieto. Jorge, meu editor, começou a rasgar uma seda, elogiando meu texto grandemente, e o quanto eles queriam – realmente! – publicá-lo. Eu não me fiz de rogado, agradeci suas palavras e disse que estava tudo certo, então. Mas ele emendou, dizendo que, bem, você sabe, como um escritor que despontou através da Internet, eu tinha uma certa, digamos, reputação ou categoria a respeitar. Categoria?, eu perguntei. É, categoria. Você está ciente, de que quando decidimos por publicá-lo, o que nos atraiu primeiramente, foi aquele seu tipo de texto cru, escatologias, coisas sobre anãs taradas e irmãos que trepam. Sei… Pois bem, e agora, quando solicitamos para você um original inédito, você nos apresenta um texto de qualidade fenomenal, isto todos reconhecemos aqui na editora, e nos sentimentos realmente honrados por publicá-los, mas, bem, seu texto falta o que… como direi? Um punch! Isto, um punch! Não há devassidão, não há sujeira, todos muito limpos, muito assépticos… Queremos coisas como estas que seus amigos escrevem. Meus amigos? Sim, este pessoal que escreve pela Internet coisas sobre cabras enlouquecidas, alcoólatras punheteiros… Queremos ousar com o novo catálogo de nossa editora, e contamos com você para isto! Então, eu perguntei se eles haviam desistido de me publicar. Ele disse, não, claro que não. Só queremos que você dê uma melhor elaborada nesta tua trama. Estaremos aqui para as modificações que se fizerem necessárias. E para sugestões, inclusive! Contamos contigo!, ele falou esfregando a mão no bigode e estendendo-me, em seguida. Quando passei pela mesa da secretária, em sua ante-sala, ela me olhou e deu um sorriso cúmplice, como se soubesse tudo o que havia sido falado pelo diretor.
Cheguei em casa pensando em mandar tudo à merda, e enviar meu trabalho para outras editoras. No entanto, lembrei do quanto havia sido complicado conseguir que um editor ao menos lesse meu trabalho. Tentando fugir do lugar-comum desta literatura que vaga pela rede, penei durante meses para elaborar uma história com uma consistência que por fim, me agradou tremendamente. E, achava, agradava também à editora. Mas eis que meu editor querido clama por putaria, sexo desenfreado e anãs ensandecidas! O que posso fazer, senão atender ao pedido deste que custeará meu primeiro livro e me elevará ao panteão dos imortais? Devo corromper minha arte em troca de alguns poucos trocados e a chance de tornar meu nome conhecido? Deve ser um punheteiro depravado, este editor. Garanto que fica se insinuando para aquela sua secretária. Bem interessante, por sinal. Acho que é chegada em um escritor, a safada.

Alessandro Garcia (http://suburbana.blogspot.com) é escritor e publicitário, tem 24 anos, e acha Porto Alegre a capital do mundo. Apaixonado por Legião Urbana e Pearl Jam (e contraditoriamente, fã ardoroso de música soul), é vocalista da banda de funk-rock Zero Kelvin e idolatra Julio Cortázar. Sabe que, no final das contas, tudo é uma questão de manter a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranqüilo.

Alessandro Garcia

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