Simplicíssimo

A Vila das Duas Cruzes *

Encerrou-se mais um dia de trabalho. Mas aquele dia era diferente. Não via por chegar a hora de poder voltar para casa com sua mais nova compra: uma motocicleta. Máquina bastante simples, nada de exagero, mas sua alegria era bem maior do que a potência do motor. Andou alguns quilômetros com o ar batendo de frente em seu rosto. Parou no semáforo e avistou do outro lado da rua uma blitz policial e tratou de vestir seu casaco de couro que trazia no colo para evitar qualquer problema. “Não tenho nada a temer“, pensou de forma fugaz. O sinal abriu e arrancou com tranqüilidade, o que não se desfez com o aceno do policial para que encostasse no meio fio. Aquele policial era tão simpático que nem parecia exercer realmente essa função. Em tom extremamente amigável e com gestos e sorrisos confortáveis, parecia querer lhe dizer algo quando apontava pequenos detalhes nada comprometedores em sua moto.

“Este volante – dizia ele – poderia estar mais alto” e lhe dirigia um olhar amigo mas ao mesmo tempo intrigante. O que estava ele querendo lhe dizer? Havia alguma coisa no ar. O que poderia ser? Afinal, estava com tudo em ordem … tudo em ordem exceto … Deus! Como não havia se dado conta antes! Esquecera o capacete! E parece que o policial ouvira seu pensamento ou lera nos seus olhos de pavor, já que na mesma hora balançou satisfeito a cabeça, como quem diz “Pois é …”. Desesperou-se, pensou em milhões de explicações, mas só conseguia dizer que não entendia como ele tinha esquecido tão importante regra. “Logo eu, que há pouco escrevi a esse respeito”. Não acreditava que aquilo estava acontecendo. Seus olhos encheram-se de lágrimas, sua voz embargou. Repetia a mesma frase, ainda incrédulo de sua falha. O policial interveio, mantendo sua postura impecável e sendo ainda mais paciente e, porque não dizer, até bastante consolador: “Não se preocupe, venha comigo que vamos providenciar um capacete”. Sentiu realmente uma boa ajuda naquelas palavras e chegou até a imaginar que não seria multado. Era o que tudo indicava.

Deixou de lado a moto e acompanhou o policial, que pegou com gentileza sua pasta jogando-a sobre um caminhão que continha muitas outras tralhas e mais se assemelhava a um carreto de frete do que qualquer outra coisa. Disse-lhe: “Isso vai aqui, você não vai precisar carregá-la junto”. Aos dois somou-se uma pequena menina, que abraçou o policial com ares de filha e embarcaram juntos pela porta de um ônibus que se enfileirava logo à frente. Pai e filha foram para o fundo do ônibus enquanto ele preferiu tomar um assento vago sem ninguém ao lado. Talvez porque precisasse refletir sobre tudo aquilo. O ônibus não era lá essas coisas. Lembrou-se do tempo em que esse era seu veículo diário de locomoção. De onde estava avistava o policial, agora já à paisana, e sua filha no último banco do ônibus. Uma cena muito agradável. Ele dormia suavemente e ela recostava sua cabeça no ombro paterno.

Uma pessoa que embarcara no ônibus sentou-se ao seu lado, tomando o assento da janela. Era um jovem rapaz que lhe remeteu um olhar desconcertante. Observou a estrada de chão batido e empoeirada e sentiu o jovem roçar-lhe a perna. Afastou-se rapidamente e a investida veio então pelo roçar do braço. Desgostoso, retirou o braço e olhou firme para o rapaz, que voltou a se aproximar. Foi preciso falar com alguma rispidez que não estava nem um pouco a fim daquilo, o que provocou a ira do jovem, que levantou-se e desceu na parada seguinte. Respirou aliviado. Observou o policial ainda dormindo ao fundo, com sua filha aconchegada em terna fotografia. Pensou em fugir, aproveitando-se do descuido, mas sem muito esforço decidiu seguir ali. Observou pela janela a estrada e os pedregulhos. O verde que se desenhava nas montanhas era digno de uma inspiração mais profunda.

Estava chegando a sua parada. Por algum motivo sabia que estava chegando e pôs-se em pé no corredor. Deu alguns passou em direção à porta e segurou firme na barra metálica que fazia o encosto do banco à sua frente. Ali estava uma menina de cabelos escuros e uma mulher com semelhantes traços ao seu lado. Não a achou muito bonita, mas da mesma forma não poderia dizer o contrário. Ficaram se olhando por um longo tempo.Vez que outra ela esboçava um sorriso e por fim falou: “Já que você não se apresenta para nós eu vou nos apresentar”. E disse seu nome e o da mulher ao seu lado, que devia mesmo ser a sua mãe. Fez mais algumas perguntas, ajudada pela companheira, mas ele não conseguia responder mais do que monossílabos. Parecia deveras envergonhado. Eis que o ônibus parou, e desceu junto com o policial e a filha.

Seguindo por uma trilha de chão batido, contou ao policial sobre o rapaz que lhe assediou, gerando longas gargalhadas. Algumas casas esparsas começaram a surgir pelo caminho. Apenas seguiu o policial até a entrada de uma delas, subindo os degrau da varanda e entrando pela porta. Um casal que trabalhavam num computador foi logo dando lugar ao policial, que sentou-se e passou a editar alguns dados num programa, o que parecia ser um procedimento de rotina. Resolveu sair um pouco para ver melhor o lugar. Surpreso e maravilhado, deparou-se cercado de casas feitas de biscoitos do tipo plic-placs recheados de chocolate. Ao centro, uma casa maior, uma espécie de torre (muito parecida com a famosa Eifel francesa) totalmente feita daqueles canudinhos salgados que serviam em festas infantis recheados de creme ou maionese. Mas ali estavam vazios e unidos numa belíssima construção. E tanto para a torre quando para as demais edificações, não conseguia ver além de um segundo ou terceiro andar. Uma densa névoa cobria tudo, numa paisagem sombria, mas não desagradável.

Observou um menino de cerca de 6 anos de idade se aproximando de mãos dadas com um moça de olhos claros cuja beleza não havia com passar desapercebida. Querendo ser simpático, abaixou-se e falou para a criança, apontando para uma das casas: “Olha lá, a casa de chocolate”. A lembrança da estória infantil de João e Maria era sui generis. Mas ao contrário do que podia imaginar, o menino pouco se entusiasmou, e sentia que o sorriso em seu rosto fora apenas para não chateá-lo. Era como se aquilo não lhe chamasse atenção, como se fosse algo corriqueiro e estivesse lhe dizendo: “Sim e daí?”. Já a linda moça sorriu-lhe dizendo com isso algo mais belo do que qualquer palavra. “O que você está fazendo aqui?” perguntou-lhe a jovem que agora também era sabidamente dona de uma rica voz. Virando-se para a casa onde o policial estava, ele respondeu em tom de brincadeira: “Seu pai vai me dar uma multa”. Uma doce risada cheia de espontaneidade surgiu na bela moça. Era como se ela estivesse lhe dizendo algo do tipo “Meu pai? Imagina, ele não é capaz de fazer mal algum”.

Dirigiram-se para a casa e os primeiros degraus lhe trouxeram uma lembrança que o deixou muito angustiado. Adentrou pela varanda e correu assustado na direção do policial: “A minha carteira … ficou na bolsa … no caminhão …como vou comprar um capacete?”. Mas nada parecia abalar a paciência e ternura do guarda: “Não se preocupe meu filho, aqui você não vai precisar disso.” “Mas que lugar é esse? Em que cidade estamos?” “Não numa cidade meu jovem, numa vila: esta é a Vila das Duas Cruzes”. Sua curiosidade foi longe. Saiu rápido para ver se avistava as cruzes, imaginando-as ao morro, uma na entrada e outra na saída da vila. Mas a névoa era implacável ao seus olhos. Nada muito além para ser visto. Entrou novamente e decidiu ficar por ali junto com outras pessoas espalhadas pela sala. Ao chegar no centro, olhou para cima. Não havia teto e a visão panorâmica revelava as casas de biscoitos encobertas pela neblina. Pode ouvir uma música tocando ao fundo. Era Breathe, do Pink Floyd. Seu coração se encheu de paz e alegria. Que cenário fascinante aquele. Olhou para os demais presentes. Não acreditava na forma como agiam, como se aquilo tudo fosse tão natural quanto a vida. Uma felicidade sem igual tomara conta de todo seu ser. Foi quando lembrou de um antigo desejo seu manifesto: Pink Floyd era o que desejaria que estivesse tocando no seu enterro …

* Fragmentos de “O Grande Sonho”


Breathe

Breathe, breathe in the air
Don’t be afraid to care
Leave but don’t leave me
Look around and choose your own ground
For long you live and high you’ll fly
And smiles you’ll give and tears you’ll cry
And all you touch and all you see
Is all your life will ever be

Run, run rabbit run
Dig that hole, forget the sun,
And when at last the work is done
Don’t sit down it’s time to dig another one
For long you live and high you’ll fly
But only if you ride the tide
Balanced on the biggest wave
You race towards an early grave.

Breathe (Reprise)

Home, home again
I like to be here when I can
When I come in cold and tired
It’s good to warm my bones beside the fire
Far away across the field
The tolling of the iron bell
Calls the faithful to their knees
To hear the softly spoken magic spell

Eduardo Hostyn Sabbi

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