Simplicíssimo

Duas Questões

 tudo o que tenho de mim:
este nome, anterior a mim e que a mim sobreviverá. do qual nunca tive chance de fazer juízo mas que determina a ordem em que serei chamado, as rimas que perseguem o seu som característico, certa maneira de me apresentar enfatizando a forma correta de sua grafia, toda uma herança histórica que nada significa para mim. ainda assim, tenho de dizê-lo meu. 
ainda:
minha língua. uma vaga lembrança de minhas ações mais recentes, certa impressão de desejar um projeto que me realize, também da realização mesma uma idéia muito incerta. meus vínculos todos, que por falta de outro que aja em meu lugar, devo assumir que deliberei empreender. 
ademais, 
algumas roupas, passagens de poemas, histórias começadas – sempre, pois não é verdade que nunca as concluímos?
sim, mas tudo isso que descrevo é só periferia. o entorno dessa coisa escura e insondável, desse abismo. acontece que no fundo sou – somos todos -abismo. e eventualmente dois se encontram e roçam de leve a superfície da boca, a pele. então, cada um conta de si que há um abismo, que não existe apenas aquela quinquilharia vulgar que pode ser tocada e maculada pelos olhos. não, tem um abismo aqui no peito, cada qual adverte, os olhos cheios de lágrima.
e fica esta estranha configuração, em que não se sabe o que se dá em troca de não se sabe o quê. o que equivale a dizer que não se sabe para quem se endereça, de não sei quem lá dentro desse absimo garrafas no oceano com mensongescifradas ao sabor das mãos nervosas desse bicho que teima intervir quando pensamos estar no turno do jogo. mas qual! se talvez nunca estivéramos. por isso inventamos a dança e o riso. dançar é roubar dos animais a vontade irrefletida de mvimentar-se, sem rito nem utilidade, num passo cego e por isso mesmo cheio de volúpia. e o riso, esse espasmo nervoso acompanhado de um ruído característico, que pode ser excitado tanto por uma irritação na pele quanto por um insight, um lampejo espirituoso. ou até pelo medo, quando se torna apenas o reflexo de mostrar os dentes. e com isso nos entorpecemos docemente, esquecendo-nos do abismo e ignorando que ele é a própria estrutura do teatro no qual nos contemplamos bailar risonhos e ignorantes. e felizes, por que não? 

de qualquer maneira, como fugir desse vórtice que nos atrai uns aos outros e que nos dilacera num mesmo gesto, e por que fazê-lo?

Estevão Daminelli

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