Não tendo o caso como estar mais perdido do que suportaria, ela soltou as amarras e selou os lábios no ocre de um papel escuro e salgado de lágrimas muito antes derramadas. Fez um parco embrulho de tudo o que lhe sobrara das tripas e escreveu ali o que vazava direto do seu coração estagnado. Apedrejou o espelho que a assistia e colou os cacos do vidro sujo no resto de vida que vedava o embrulho ensangüentado.
Verteu os últimos suspiros de um antigo Merlot com goles duros de quem não tem esperança e engoliu ali as melhores lembranças. A garrafa verde musgo do vinho ácido defendia do mundo aquele arremedo de romance em desuso sem norte e sem vaga na calçada. Pôs um escrito na garrafa repleta de desamparo e vazia de toda uma vida que não fora para nunca mais.
Lacrou o gargalo com uma vela nua esquecida e incandescente. Correu para o mar como quem corre para os braços de um amante caliente e jogou-se com a garrafa para o fundo de seus dias. Após vários anos foram encontradas ela e sua cantiga numa pequena baía no porto onde amigos e suicidas se encontram à tarde.
Um homem indecente achou-se dono de tudo e limpou os embaçamentos dos corpos rijos de tão verdes acinzentados. Com delicadeza acalmou os musgos do tempo e retirou do ventre da moça o resto da cantiga de amigo cheia de água. O que se viu foi um sorriso bordado no rosto intacto da moça e da garrafa ouviu-se um gemido de muita alegria ou de padecimento.
Tornaram-se amantes e selaram seus destinos com lábios de garrafa no ar rarefeito de todas as coisas que vêm e teimam em jamais ir embora.
Era doce Bordeaux o mar naquele dia.
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