O resto é sombra de árvores alheias…"
[Fernando Pessoa]
Há uma eternidade crio pingüins de geladeira. Ultimamente, eles deram para ganhar filhotes de toda parte do mundo e estes já se espalham pela casa inteira, fundando meu Galápagos particular. Cultivo, também, muitas outras coisas sem importância, as quais convencionei chamar "minhas micróbias" – no feminino mesmo, pois assim requer o meu gênero.
São flores secas nas páginas das agendas, dadas por pessoas queridas e, de preferência, sem motivo algum ou com a intenção única de me ver sorrir. São pétalas de bougainvilles, jasmins inteiros, ramos de beijos e acácias, flores do mato sem importância que se transformaram em jóias no exato instante em que me foram dadas. Elas se enramaram entre os livros de meu pai, herança de papel-bíblia que ele lia em trajes de trabalho, sempre ocres, guardando o cheiro dele misturado ao aroma perdido e eternizado entre as palavras. Flores ocres, trajes crus.
Possuo ainda latifúndios de bonecas antigas, todas muito usadas e muito queridas. Somos donas umas das outras e mais das vezes sorrimos. Comigo domaram anos e os senhores dos nossos destinos. Algumas ainda riem frouxo, outras beijam, umas choram há bastante tempo e há as que me observam por dentro de olhos azuis cristalinos e não me dizem mais nada. Talvez, guardem algum segredo para a noite, quando todas se reunirão em baixo da cristaleira e lá discutirão sobre o risco de não brincarem mais comigo pois tudo anda tão difícil e complicado.
Há também minhas jazidas de pedras que herdei de meu padrasto-geólogo. Gemas fartas de estórias de andanças pelos sertões cearenses, da vida capixaba, de mãos de farda e de origem humilde. As clivagens que fizemos se refletem hoje nas pedrinhas que me espreitam da estante da sala. Todas possuem a matiz do caráter lapidar do homem que me ensinou a falar com elas e a compreendê-las. As pedras falam e contam estórias diferentes para cada um, em cada tempo.
Possuo fortunas em vidraçaria: pedacinhos coloridos de vidros usados pelo meu avô cearense, matuto de Tauá, para retirar calos das mãos e guardados numa caixa de sapato em baixo da cama do casal. Ele faleceu mas o pedaço de vidro que ficou não quebrou. Continua de um azul eternamente cobalto, desfilando num bauzinho, eras que não existem mais. Há também o bombom de murano vermelho, o vasinho cor-de-rosa, brinde de uma companhia cosmética e os vidrinhos de remédios antigos, do boticário-amigo da minha cidade natal. Nada especial. Tudo apenas essencial.
Tenho outro latifúndio em canetas de propaganda, minha "fortuna de amenidades", como diz minha avó Luzia. São centenas, todas com logotipos, nacionais e estrangeiros, companhias de viagens, lápis dos longes, antigos reclames de televisão. Desde cedo as tive: estudei em colégio alemão. Daí meus caderninhos de fitas e botões de roupas antigas. Tenho uma fortuna em cédulas novinhas economizadas de mesadas dadas pelo meu avô, lá pelos idos de 69, guardada em caixas de charutos e de sabonete Phebo, de madeira, herança da minha avó Rosa.
Há pouco, ganhei de presente o urso polar de louça inglesa, de Tutu, irmã de meu pai: quando fiquei órfã, ela me criou como uma boneca de louça e até hoje, nossa relação é assim, de mãe e filha tecida em porcelana antiga. Era pra o urso morar na geladeira, mas tanto me afeiçoei a ele que dorme na minha cabeceira, pois as lembranças do rugido dele no corredor da casa grande me fazem dormir mais depressa. Um dia, saindo para o trabalho, pedi para a secretária: por favor, não mexa no urso que está na minha cama. Observei que minha vizinha sorriu encabulada. Só hoje entendi o porquê. Segredos de família.
Tudo está na minha caixa de eternidades. Todas as louças desemparelhadas, todas as flores, todos os perfumes que se reinventam nos vidrinhos da cristaleira, coisas sem importância impregnadas em mim de tal forma que me dão essa certeza medonha: sou uma pessoa feliz pois tenho guardado em meu próprio mundo tudo o mais que ninguém quis.
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