O Sol de meia tarde ardia no lombo, ouvia dos comentários ao meu redor. Realmente não era das melhores horas para sair à rua caminhar. Minhas alternativas eram muitas, mas não podia hesitar nesta tarefa. Chegava a mais uma encruzilhada na jornada e não cabiam mais interrupções. Ao encontrar o número 659 da ruazinha de terra me detive por um instante, enquanto passava um carro e me cobria da poeira vermelha característica do local. O bar, logo à frente, convidativo e arejado é uma parada estratégica para averiguar o local e retomar o fôlego.
O dono do bar logo percebe que não pertenço ao lugar e vem jogar um pouco de conversa fora comigo. Pergunta meu nome, responde com a história do seu. Indaga minha origem, comenta um pouco da sua. Seu Neca, homem simples, nasceu, cresceu e vive até hoje dentro do bar que foi de seu pai e que antes era um bolicho de estrada nos tempos de seu avô, antes da cidade engoli-lo completamente, ficou surpreso quando disse que era de Morro Alto mesmo e que voltava para tratar de assuntos inacabados no passado. Passava por sua rua para rever amigos de colégio. Entregou-me a água que pedi, desejou-me sorte na empreitada e apontou para uma mesa no canto do bar onde a sombra da porta abrigava do Sol e permitia uma boa visão da rua. O lugar parecia-me perfeito e para lá me encaminhei. Sentei e fiquei a observar o número 659, quase em frente. Já eram 5 e meia da tarde, horário de verão, e o mormaço gaúcho continuava a castigar os incautos que insistiam em cruzar a ruazinha de chão batido com poeira vermelha. Por sorte o vento não fazia os redemoinhos de costume, que insistiam em invadir o Bar do Seu Neca solicitando seu fechamento momentâneo para resguardar as mercadorias e a arrumação das toalhas brancas das mesas, como ele mesmo me relatara há pouco.
A água acabou e junto com ela a minha paciência. Paguei a Seu Neca a conta devida, aproveitando para pegar umas rapaduras de amendoim e de leite no troco. Guardei-as na minha maleta e saí a passos largos rumo ao número 659, diminuí o passo ao alcançar a rua e fui brecando até parar completamente em frente à porta. Era marrom, é tudo de que me lembro. Não encontrando campainha, bati com suavidade. Aguardei alguns instantes e tornei a bater mais forte. Passa mais algum tempo e ninguém aparece para me atender. Resolvo ir até a cerca de madeira na lateral da casa. Percebendo movimentos no fundo do pátio bato palmas para que a pessoa perceba minha chegada. Logo vem o aceno com a solicitação para aguardar mais um momento enquanto termina de colocar as roupas no varal. O tempo urge e vem uma moça de chapéu de palha largo caminhando desde o varal, uns 20 a 30 metros, até a cerca de madeira que nos separa. Sua caminhada rápida só fez-se diminuir ao me avistar e começar a retorcer-se. Qual não foi minha surpresa ao receber, ao invés de uma saudação, a indagação se era eu mesmo que ali estava. Ao consentir com a cabeça ela imediatamente retirou o chapéu de palha e o lenço do pescoço, deixou cair seus longos cabelos negros sobre os ombros, abriu o portão e me deu um longo abraço. Era ela, Eriane. Um pouco envelhecida pelo Sol e pela vida dura que parecia levar, mas com todo o fulgor da alma brilhando nos olhos como em outras épocas.
Entramos e enquanto aguardava o chimarrão pude notar a simplicidade de seu lar. Tudo muito bem arrumado, limpo e organizado, mas objetos simples e escassos de uma decoração praticamente inexistente. Senti falta de fotos da família, do marido e dos filhos que porventura tivesse; as procurei sem obter êxito. Com o chimarrão pronto e uma tigela de bolinhos fritos, somados as minhas rapaduras, para comermos colocamos os assuntos em dia. Não lhe contei tudo mas deixei que visse minha aliança, que achou melhor não comentar. Contou-me a tragédia de não poder ter filhos e viver a 5 anos entregue somente a lida doméstica, pois seu marido não lhe permitiu continuar a trabalhar como contabilista após saber que não podia engravidar. A mantém em casa, como única decoração de uma casa esquecida numa rua empoeirada. Ela, por sua vez, prefere não comentar muito o assunto e pede que lhe fale de mim, por onde andei, o que fiz, as aventuras que tive…
Relatei todos os acontecimentos dos últimos anos, minhas viagens, namoros, encontros e desencontros. Ao perceber que já passava das 10 da noite, achei melhor me retirar. Afinal, não ficaria bem para ela receber um homem sozinha em casa por tanto tempo sem que os vizinhos comentassem. Era assim no interior; provavelmente estariam todos no Bar do Seu Neca já comentando algo a essa altura dos acontecimentos. Disse-lhe que iria me retirar, que estava cansado e que no Hotel encontraria meus objetos particulares para realizar a higiene diária. Li no seu olhar, como nunca pudera ver antes, toda a vontade de ir comigo ou pedir para que eu ficasse. Com a idade aprende-se a ver e ouvir mais do que simplesmente enxergamos ou escutamos, mas a timidez mútua nos impeliu a um abraço frio e uma saudação de boa noite apenas.
Fui a pé para o Hotel, que não era longe. Cheguei cerca de 30 minutos após partir da casa de Eriane – nome único, fruto de um erro fônico de seu pai no dia do registro do seu nascimento. Para minha surpresa a recepcionista me disse que havia deixado uma moça, que tinha se identificado como minha noiva, pegar a chave e subir até meu quarto. Será que ela viria sem me avisar? Ao abrir a porta do quarto Eriane estava lá, com um sorriso maroto que só ela possuía desde a época que éramos colegas de ginásio. Fechei a porta e ficamos os dois a nos olhar e rir por longo tempo até nos aproximarmos e o silêncio inundar o quarto num beijo apaixonado.
Noite maravilhosa, perfeita, sem as culpas da vida. Momentos sem descrição, de total doação e entrega. Mas chegou a manhã e o Sol nasceu no horizonte. Por volta das 8 horas da manhã, trouxeram-nos café no quarto, como eu havia solicitado. Comemos e fui tomar um banho. Ao voltar ela estava arrumada e pronta para sair. Com uma caneta na mão, disse-me que não conseguira escrever um bilhete de despedida e ficara para dizer-me, olhando nos meus olhos, tudo que eu deveria ter dito a ela há uns 5 ou 6 anos atrás. Sua irmã a aguardava do lado de fora do quarto para levá-la e dar-lhe um álibi para o marido que devia ter chegado de madrugada em casa, mas notaria sua ausência apesar de seu estado, provavelmente, bêbado e lastimável. A irmã interferiu, interrompeu nossas despedidas e tirou-a dos meus braços para levá-la de volta a sua realidade suburbana.
Passei os próximos meses me indagando sobre o cartão que recebi mês e meio após ter estado com ela. O mesmo dizia: "Anjo, trouxeste a alegria e o esplendor de volta a minha vida, a minha casa, a minha família. Aguarde que te darei outras explicações. Estou feliz ao lado de meu marido, sejas feliz ao lado de tua noiva que será tua futura esposa." Partiam meu coração essas palavras, mas de paixões da juventude não podemos viver e acreditava que ela tinha se dado conta disso antes de mim. Vivia feliz com minha noiva, que seria em breve minha esposa e que, com certeza, seríamos muito felizes juntos, já que possuíamos mais que amor, paixão e tesão. A compreensão iluminava nossas faces nos momentos difíceis e o carinho era a moeda empregada nas nossas negociações.
Ao marcar a data do casamento, mandei um convite para Eriane e sua família. Não sabia o nome de seu marido. Já havia passado quase um ano da data que tínhamos nos encontrado pela última vez. Era como se quisesse apenas tê-la junto comigo no casamento. A ansiedade que sentira há um ano atravessando uma rua empoeirada para bater em sua porta havia cessado por completo, ficara a amizade estável e sincera. Alguns dias depois recebi uma carta dela justificando sua ausência na cerimônia, que resumidamente dizia: "Anjo, assim ficarás conhecido por mim e minha irmã. Fui há mais ou menos um ano realizar um ritual de fertilidade, comunguei com a natureza e meu marido conseguiu finalmente cumprir o papel que lhe faltava como macho no casamento. Estamos com uma filha pequena de 2 meses e meio, linda, esperta e que semeou união, conforto e esperança no nosso lar. Desejo as maiores felicidades para ti e tua futura esposa…" A lágrima que correu de meus olhos não explico porque não entendi, foi felicidade, sofrimento, amor, rancor, alegria, ternura e amizade a mais pura das criaturas que tive o privilégio de ter conhecido e naquele dia apagado definitivamente da minha memória.
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