Simplicíssimo

Nova vida

Afinal, já não moro em Leiria. Não sei como vim cá parar, só me lembro da história que vos vou contar a seguir.

Acordei cedo, nesse memorável dia de uma vida cansativa (julgo eu), com dores nas têmporas mas sem sono, apesar de, na véspera, ter trabalhado até tarde a corrigir testes – eu era professor, mas já nem sei de quê. Sei que vivia só, desde há vários meses, se calhar anos, num pequeno apartamento em Leiria. Nem tinha amigos, porque os de infância, de que me recordo vagamente, dispersaram-se pelo mundo, e dos outros ter-me-ei afastado, já não sei porquê, nem se fui eu que me afastei deles ou eles de mim. E já não fazia novas amizades, apenas lidava com outras pessoas no dia-a-dia e conhecia-as, mas mal. Eram colegas apenas, mas amigos já não tinha, nem pensava poder vir a ter; o que teria conseguido talvez, se quisesse, mas já não estava para aí virado, não tinha já paciência. Creio que me tornara, sem querer, naquilo a que se chama um misantropo, se esse for o nome adequado. Para os outros não sei, talvez me considerassem um filho da mãe sisudo e nada mais. Era capaz de ir a convívios e de falar com outras pessoas, mas sem fazer amizades, tudo me era quase indiferente. Julgo que me compreendem, não é? Nos tempos que correm, e para quem já vai entrado na idade, não é fácil cativar ninguém e, se os outros não estão para aturar as nossas limitações, porque havemos de aturar as deles? Quanto aos familiares, filhos inclusive (disseram-me que tive quatro),  apartaram-se todos de mim porque… bem, dessas histórias também não me lembro bem. Mas desta que vos vou contar sim, e é por isso que a conto. Aliás, conto-a todos os dias, ao jantar.

Como comecei por dizer, acordara cedo nesse dia. Tive tempo suficiente para fazer tudo o que se faz normalmente pela manhã, mas sem stress. Aplico esta palavra porque, se dissesse ansiedade ou outro termo em português, não exprimiria com fidelidade o estado que a falta de tempo provoca nas pessoas. Se, quando somos jovens, até gostamos do stress e, na falta dele, provocamo-lo até, depois de viver o suficiente e de se ter experimentado elevadíssimos níveis de stress, deixamos de achar-lhe piada, e passamos a levar as coisas com mais calma. Chegamos a detestar o stress que os outros nos provocam, dando pressa. Uma situação muito semelhante à dos fumadores que deixam de fumar e passam a não suportar o fumo dos outros. São esses que, depois, mais radicalmente combatem o fumo alheio, por estarem seguros da estupidez com que, durante muitos anos, pactuaram. Poderia continuar a comparar o stress com muitos outros aspectos dos humanos, a que se chama vícios. Acho, no entanto, que nenhuma novidade acrescentaria à minha história – sobre o que aconteceu naquele bendito dia. A arte de contar histórias manda deixar os leitores em suspenso até ao fim da história, fugindo do tema principal para outros que, sendo até mais importantes, nada têm a ver com a história delineada logo no início.

Entretanto, os apostos-ou-continuados que introduzi no parágrafo anterior servem para, sem ter de vos aborrecer com o relato das minhas banalíssimas actividades matinais, poderem imaginar o tempo a passar, tempo esse que é necessário a todas as actividades humanas. Posso, deste modo, saltar logo para a minha saída de casa, em direcção ao trabalho. Nessa altura, o meu único relógio era o que tinha em cima da mesa de trabalho, onde estivera a corrigir os testes na véspera. Deixei de usar relógio faz tempo, e assim será no futuro, porque é o principal causador de stress. Como ia dizendo, olhei para o tal relógio antes de sair, e ele marcava 7:30 AM. Também reparei que tinha a luzinha da bateria muito fraca. Tinha posto uma pilha nova ao relógio há cerca de um mês, e a anterior durara três meses ou mais.

Como, em dez minutos e a pé, lograva alcançar a escola e faltava ainda uma hora para a reunião do Conselho de Turma, resolvi ir ao café da esquina, onde quase todos os dias entrava, ao passar. Os empregados já me conheciam, sabiam que, quando eu entrava, era só para tomar café, e nem me perguntavam o que queria; eu falava, pois, o menos possível com as pessoas, e elas comigo. Nem sequer saberia do que falar com elas, porque não percebia nada dos assuntos delas – nem me interessavam, suponho. Não as conhecia de lado algum, não sabia se tinham familiares para lhes perguntar por alguém, enfim, as únicas palavras que, por vezes, eu pronunciava mas a custo, era “Pode-me trocar esta nota?” ou “Faz favor” e “Obrigado”. Por isso, fiquei deveras surpreso quando a rapariga que servia à mesa nesse dia, me disse: “Viva, faz já algum tempo que não o vejo por cá”. Levantei a cabeça, que ainda me incomodava, lembro-me perfeitamente, e disse-lhe: “Mas ainda ontem cá estive…”. Ela olhou-me, com um ar estranho, e retirou-se, encolhendo os ombros. Provavelmente arrependida de me ter dirigido a palavra, mais valera ter estado quieta. Eu pronunciei, mentalmente, um insulto a mim mesmo. Porque ela, coitada, levada pela natural bonomia das pessoas, talvez tenha querido apenas ser simpática comigo, espevitar o “bicho do mato” em que me tornara, arrancá-lo da sua auto imposta prisão de silêncio, de azedume e de tédio, um tédio imenso. Mas, nessa altura, eu era tão misantropo, julgo, que nem de mim próprio gostava. Isso, ela, naturalmente, não devia saber.

Acabei de tomar o café, fiquei ainda alguns minutos sentado e absorto, a pensar em nada, vigiando apenas as horas do relógio do café – todos os cafés têm relógio, um café sem relógio é como uma igreja sem cruz – e, quando entendi que já só dispunha do tempo suficiente para não chegar atrasado à reunião, levantei-me, paguei e saí.

Caminhei normalmente para a escola, estava frio (ainda me lembro como se fosse hoje), mas não tanto que me obrigasse a estugar o passo, devia estar bem agasalhado. Cheguei pontualmente à escola, passei pela portaria abanando com a cabeça à auxiliar da portaria que me lançou um sorriso esquisito, num misto de surpresa e cinismo, lembro-me tão bem disso… Nunca a vira sorrir anteriormente, muito menos para mim. Continuei, impassível, o meu trajecto para a sala da reunião.

Caros amigos, aproxima-se o instante mais importante da minha narração. Da história desse único dia que me ficou ainda guardada na memória. Mas que um dia se apagará também, para sempre.

No corredor, um auxiliar aproximou-se de mim, apressado, para me comunicar que devia ir urgentemente ao gabinete do Sr. Director, que me vira chegar, através da janela. E também me informou que eu já fora substituído por um colega da escola. Senti, nesse instante, o sangue a fugir-me do corpo (nem sei para onde), devo ter ficado branco que nem a parede do corredor, e senti umas vertigens tais que tive que me apoiar nela (parede) para não cair. As minhas pernas ficaram com menos força do que as minhas orelhas e, se não fosse o absurdo da notícia a despertar-me para a realidade (sim, porque haveria eu de ser substituído quando isso só acontece depois de uma baixa prolongada?). De imediato, adquiri nova alma, disfarcei o desfalecimento, sorri para o auxiliar e disse-lhe: “Só pode ser uma brincadeira!”. Mas nem quis ouvir a resposta dele e encaminhei-me, revoltado, para o gabinete do director. Bati, entreabri a porta, e disse: “Bom dia, posso entrar?”. O director mandou-me entrar, fez logo sinal para eu me sentar na cadeira frente à secretária. Parecia que o assunto era grave. Mas, ao menos, sentado, não corria o risco das pernas sucumbirem a alguma má notícia.

Sentei-me e esperei que ele se explicasse. Pigarreou alto, e disse:

– Dadas as circunstâncias, o melhor que tens a fazer é ires-te já embora da escola. Eu faço de conta que nem sequer te vi. E manda-me, urgentemente, um atestado médico com a data de 3 de Janeiro de 2006.

2006? O tipo deve andar stressado, pensei. Indescritível, embora já a tenha contado tantas vezes, é a sensação confusa que nesse instante me invadiu. Por um lado, ele mostrava-se meu amigo porque me dava a oportunidade de preservar o emprego, desde que apresentasse o tal atestado. Por outro, eu não compreendia a necessidade do atestado, ainda ontem tinha ido trabalhar, e andei a corrigir testes em casa, sem o que não poderia agora estar apto para atribuir as classificações do primeiro período aos meus alunos. E porque recuar tanto na data do atestado – nenhum médico me passaria semelhante coisa – se já estávamos em Dezembro? Duvidando já das minhas certezas, atrevi-me a fazer uma pergunta, mas inseguro:

– Mas eu dei alguma falta injustificada em Janeiro? Não me lembro…

O ar com que ele me olhou foi de quem está perante um semelhante que perdeu por completo o juízo. Sabem? Ficamos sérios, passamos a medir o que podemos ou não dizer para não despoletar a cólera do nosso invulgar interlocutor, pensamos longamente o que vamos dizer. Mas, depois de me ter feito esperar algum tempo numa crescente angústia (aqui o stress já não se aplica), disse-me:

– Os teus alunos não tiveram ainda a avaliação do primeiro período! Vamos ter que convocar uma nova reunião, e manda-me, por favor, as notas por correio registado. Serás representado pelo teu substituto, um colega cá da escola. Ainda não pedi a tua substituição oficial. E não te marcámos falta à reunião, senão o atestado teria que abranger também as férias de Natal. Julgávamos que algo de grave te tinha acontecido. Sei lá, algum acidente. Telefonei para o hospital, para a polícia, para todo o lado.

Afinal era verdade, eu fora mesmo substituído. Férias de Natal? A cabeça começou a trabalhar a 1000 à hora. O que se passou com o tempo? Afinal só acordei tarde e a reunião já se tinha realizado. O relógio parou, apenas isso. E o relógio do café? Também avariado? Não pode ser. Mesmo assim, chegar atrasado à reunião e já ter substituto? Quando se faz uma substituição, o substituído não pode regressar sem alta passada pela junta médica. Já começava, porém, a fazer algum sentido ele ter-me dito que ia fazer de conta que não me vira. E porque repetir a reunião se ela estava marcada para aquele próprio dia? Isto é uma brincadeira. Férias de Natal? Ri-me a bom rir, mas o director não se ria, ficava era cada vez mais sério. E preocupado, segundo me pareceu. Parei de rir também. Será? Mas se não é uma brincadeira de muito mau gosto, então o que é?

Uma ideia absurda passou-me então pela cabeça, e senti um calafrio percorrer-me a espinha de alto a baixo, e tive medo de mim, sim, medo de mim mesmo. Olhei em redor à procura de um calendário. Lá estava um, pendurado na parede de defronte, a mostrar o mês de Janeiro de 2006, e com os dias riscados até 15, inclusive. Levei as mãos à cabeça porque senti uma forte e súbita dor que, assim como veio, também passou. E uma paz maravilhosa, um sentido de plena liberdade, começou a apossar-se, finalmente, de mim.

Levantei-me sem dizer nada, saí do gabinete, saí da escola, vagueei sem rumo, primeiro de olhos postos no chão e a rir, baixinho, depois, sem me poder conter mais, de olhos para o céu. E ria, ria e ria… E enquanto ria, sentia a cabeça a esvaziar-se (ficaram-me apenas leves recordações do passado), até ficar quase oca. Oca de tudo, menos da história que agora vos conto, e que conto a mim mesmo, e a todos os meus actuais amigos.

Finalmente deixei de ser misantropo, falo com toda a gente e tenho muitos amigos novos, que gostam de me ouvir contar esta única história de que ainda me lembro e sei que se passou comigo. Alguns dos meus novos amigos já a conhecem melhor que eu, mas ouvem-na todos os dias com atenção, e riem-se também. Eu gosto de os ouvir rir. Por vezes, alguém desata a chorar em vez de rir e eu, sem razão alguma, também me sinto triste. Mas é uma nova vida, muito mais humana que a que eu tinha dantes, creio. Já estão a chamar para o jantar. Hoje não vou contar a história de memória, como costumo fazer, vou lê-la. É muito melhor, porque também já vou falhando muito nos detalhes.

Dizem que tenho uma doença (Alzheimer?) e que me vou esquecer até de quem eu sou.

E quem sou eu?

Eles sabem.

Henrique Sousa

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