O processo criativo, por definição, inclui várias etapas e muitos níveis de angústia. Desesperos, alucinações, delírios e um tal desnudamento de alma tão exaustivo que, não sempre, mas quando em vez, entre um inferno e outro, loucos sábios são levados à compreensão e se protegem contra a eterna chatice da sanidade. Na genial lição de Truman Capote, é nesta louca compreensão que reside a arte de escrever. Para ele, um flagelo necessário: ao verdadeiro escritor, cabe flagelar-se dia após dia, fôlego ante fôlego, para encontrar-se com a verdadeira essência de cada palavra. A isto chama-se Tormenta.
Tormenta porque a própria consciência deste processo é, em si mesma, exauriente. Paradoxalmente, é preciso estar sempre à deriva, sempre à escuta, sempre à espreita, sempre alerta aos silêncios ensurdecedores do Todo e atento aos barulhos inaudíveis do Nada. Como se a Vida, ela mesma, já não fosse caótica o suficiente… (Como se todos os nuncas não fossem tortuosos o bastante). E, ao final, irremediavelmente, são todos pegos de surpresa. A inspiração vem e vai-se como uma gangorra e o que se tem nas mãos é tão etéreo e tão forte que é preciso concretizá-lo imediatamente no branco de um papel. Flagelo concluído. A isto chama-se Morte.
Assim são os verdadeiros escritores. Misto de gente com anjo, de loucura e sagacidade, de mentiras e verdades, de origens e finalidades. Anjos danados e banidos de um céu próprio, de um mundo que inexiste para os outros. Neste limbo que habitam e insistem em traduzí-lo, vivem em eterna legítima defesa, dizem alguns. Tal Querubins atormentados, não raro, usam suas armas secretas: vagueiam entre mundos e vácuos deixados entre as coisas e pessoas. Das muitas dimensões disso tudo, dessa procura e desse não encontrar, fazem ali seu ofício. Burilar palavras, flertar com o Nada, raptar as almas ouvintes e seduzí-las, para então, encantá-las e mais uma vez arriscar-se nos breus profundos e noutros breus. E, se algum burburinho houver nas entrelinhas, haverá sempre trabalho. Se, porventura, as palavras traduzidas fizerem sentido para uma única pessoa, terão concluído a árdua tarefa. A isto chama-se Talento.
Então, num confinamento quase hospitaleiro, estas criaturas se albergam dia e noite, horas e anos a fio. Guiam-se feito vagalumes ensandecidos na imensa solidão com a qual se acostumaram – e a que se recusam em abandonar. Esse confinar-se involuntário é o preço que pagam por não resistirem à sedução das palavras e a seus infinitos significados. Serpenteiam, ambivalentes, entre um mundo e outro, curiosíssimos que são, numa arriscada montanha russa onde a dor maior do que a própria verve de escrever é trazida com a vontade de traduzir-se, transmutar-se, transcrever-se em linguajares acessíveis, nos quais a essência do outro lado da Vida possa trazer-lhes alguma luz, alguma alegria e, quem sabe, a algum ferido, cura.
Desse árduo compromisso, vive uma verdadeira horde de carteiros-poetas, brindando-nos com mensagens lapidadas e belamente traduzidas, cujo som e letra, com jeito, conseguimos entender. Nessa eterna busca do Belo eles habitam, harmoniosamente. São os danados, os doidos varridos, os transgressores das formas e das idéias, os Anjos Rebeldes – alguns, dementíssmos; outros, escritores. Sublime o compreender dessa transposição entre os mundos.
E, quando tudo o que não foi dito for traduzido; tudo o que não se ousou enxergar for observado; e tudo o que sequer tem som algum for ouvido e transmutado em idiomas, formas, cores, sons, texturas, sinfonias; nesse momento, para um prosaico número de loucos e desvairados, de fato a Tormenta terá valido à pena e o espectro de todas as Mortes terá assumido seu melhor encanto: o Talento, dom difícílimo, terá se traduzido em pura Arte. A isso chama-se Sorte.
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