Simplicíssimo

Estranhamento

Quando viu, não reconheceu. Aliás, quase passou sem cumprimentar. Seria taxado de mal-educado, não tivesse voltado ali, para a saudação. Enrugou a testa. Espichou os olhos, como querendo identificar aquele olhar. Aquela cor de cabelos não lhe caíra bem, pensou. Ou não seria a cor, mas aqueles fios acinzentados? Titubeou. Era isso. A barba. A diferença era a barba. Ficara mais velho assim, ou mais carrancudo. E aqueles óculos.

E se não cumprimentasse? Passaria, apenas. Distraído, não tinha visto. Já não era tido como simpático, não precisaria fazer de conta. Sempre sisudo, cumprimentar nem era mais hábito. As bochechas pálidas moviam-se pouco, como esboço de sorriso. Não deveria sorrir, depois de tudo. Sério, de novo. Andava ocupado, aquela conversa tomaria-lhe tempo. Intrigado, ainda não estava convencido, quase em espanto. Percebeu a mirada, como um convite. Responderia? Esperou.

Passasse por insolente, ou até tímido. Confrontar-se com tantas memórias agora era demais. Poderia esticar a mão, não custaria. Vinham as memórias. Devolveu a mão à cintura, ensaiava a saudação. Teria sussurado um como vai, não fossem os últimos acontecimentos. Mas quantos anos. Ou meses, ou dias. Nem sabia mais. Fazia tempo.Sorriria à sua maneira. Não sabia quando seria a próxima vez, e a imagem não lhe agradava. Poderia apenas cumprimentar, e logo sair, justificando a atribulação do dia. Por vezes, acreditou que não se reencontariam. Naquela época, tantas discussões, rumores. Daria as costas e retornaria a sua vida. Não precisava fazer de conta. Andava ocupado, nem tinha mais tempo. Paciência. Permaneceram uns minutos se olhando, com estranheza. Não havia razão para discórdia, mas sorrir soava até a desaforo. Deboche. Não sorriria, decidiu. Ponto final.

Se dariam por desconhecidos, dali em diante. Era esperado. Há tanto tempo afastados, ocupavam espaços diferentes, e o mesmo. Daí as discussões, a distância necessária depois de tudo, e então o silêncio. Ocupavam o mesmo posto, e mais. Disputas, duelos. Não cumprimentar seria antipático. Sorrir, que hipocrisia.Olhou em volta, ninguém ali. Estivessem numa multidão, seria fácil fazer que nem viu. Só os dois no recinto, não poderia fazer que não tinha reconhecido. Mas sorrir não. Pouca mobília, mas o armário e o sofá imponentes, clássicos, de cor escura, estampa antiga. Tapete fino, aquele, nem se lembrava mais. Pé direito alto, sala ampla. Vazia. E os dois, ali, naquele impasse.

Já foram mais próximos. Na época em que ocupava outro cargo, encontravam-se no elevador, corredores. Era quando se tratavam com alguma simpatia. Uma e outra reunião social, quem sabe. Amistosamente, ou nem tanto. Naquele tempo ele era um tipo mais afável. Depois, afastaram-se. Não propositalmente. Coisas da vida. As correrias de sempre. Foi ficando mais quieto, não se viam mais, nem no elevador. Ajeitou o cabelo, num gesto de desconforto. Lembrava-se de como tudo acontecera. Sim, muitas discussões, desacordos. Nenhuma ruptura formal. Um afastamento natural, a falta de tempo, a rotina turbulenta, seus afazeres. Um ar presunçoso, esse sempre. Fácil de reconhecer, numa multidão de olhares. Agora, parecia envelhecido, testa enrugada, riscos largos. E aqueles óculos, agora. As vistas cansadas. Noites de inquietude solitária. Todos em volta, e ninguém ali. Falava pouco, tinha se tornado homem de poucas palavras. Por isso, se nem desse olá, não faria diferença. Nem rabugento. Insoso, em seus trajes sóbrios.Sempre aquele tom de cinza. Ele cinza.

Sorrir, então, há muito não fazia. E por que deveria sorrir logo ali, com ele? Um cumprimento convencional, pra dizer que fez. Não tinham nada em comum, esqueceram-se da voz um do outro. Sem diálogo. Um silêncio e pronto. Nada a dizer. A falta de assunto, conhecida. Aquele olhar pro relógio, como de quem já deveria ter saído. Atrasado. Disfarçando a falta de assunto, de tudo. E agora os dois. Quem diria, cara a cara. E nada a dizer, só um balbuciar de saudações, o erguer da testa à direita, o outro à esquerda. Sempre contrários. Os cabelos brancos, fios ainda. Semblante imóvel.

Não fora tão fácil reconhecer. Aquela hesitação do início. Muitas mudanças, a evidência da época que passou, tornando-os estranhos. Meros conhecidos. Não que antes fossem próximos, mas bem que havia um tom de simpatia. E então o longo período de distância, não se enxergavam. Sem duelos. Sem notícias. Silêncio. E aquele reencontro, de repente. A surpresa. O reconhecimento. A perplexidade e a incógnita. Quem cumprimentaria primeiro?O esboço de sorriso, seguido das memórias. O desmanchar do sorriso, que nem aconteceu. Más lembranças. Outra época, e tanto afastamento. Era assim. Um movimento dissimulado no rosto, e só. Bastava. O tempo que já fazia. Tinham envelhecido. Nada a dizer.

Saiu, ensimesmado. Mandou trocar o espelho da sala.

Betina Mariante

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