Simplicíssimo

Aurora (V)

V

– Recrias um novo mundo e ele se abrirá para ti como a luz mais bela.

Quando pude levantar e dizer as primeiras palavras após minha recuperação havia um reflexo alaranjado na janela que me deu a impressão que os campos se incendiavam a nossa volta. A natureza silenciosa, insondável e até então desconhecida de meu estado de sentidos me deixara horrivelmente alarmado, mas ao saber que minha companheira na cabana era irmã da mãe de Alermano, morta há tanto tempo, fui atingido pela mais dura das substâncias do ceticismo, para depois cair na mais total incredulidade. Estava tão preocupado com meus raciocínios e minhas angústias possuíam tão diversas causas naquele momento que não posso recordar perfeitamente de todas nossas conversas nos dias que se seguiram, mas, por mais dominado que estivesse por minha própria confusão e agitação, as palavras dela, em seu sotaque de estrangeira, eram tão graves e claras que até mesmo hoje posso pronunciá-las com a mesma clareza e ar bondoso e sorridente, sentindo agora minhas faces escaldantes de surpresa do mesmo modo que as senti há tantos anos. E desta forma agora concluo que, mesmo no mais terrível estado de desorganização, a alma, movida pela força intelectual, sempre volta à necessidade do esplendor da verdade e do concreto discernimento; e foi na forma daquela peculiar experiência em minha juventude que descobri que a verdade é muito para ser suportada, pouco é para ser compreendida e menos ainda pode ser desfrutada.

“- Nunca soubemos, Alermano e eu, que sua mãe tivesse uma irmã.” – disse-lhe com ar seco na garganta, abanando da face as fumaças dos incensos que davam à atmosfera da cabana um ar paradisíaco.

“- Alermano era muito jovem quando sua mãe o levou de Ruta. Os inquisitores tinham recentemente nos encontrado e, após o que acontecera a seu pai, não havia mais nada a fazer a não ser fugir; e fomos juntas. Não tínhamos muitas opções, digo, naqueles dias.” – ela me respondeu com seu ar ausente, confessando a fraqueza do povo de Cristo. “- Então meu pai a conhece, quero dizer, sabe quem és e onde moras hoje?” – ela me respondeu com um movimento com a cabeça, positivamente. Então continuei: “- Afinal, que lugar é este e como…” – a dor em meu pescoço me impediu de concluir.

Meu ferimento ainda não estava totalmente curado e percebi uma grande preocupação da mulher em me acudir. Ela se pôs de joelhos a meu lado e com suas mãos trêmulas limpou mais uma vez, com um pano quente, minhas feridas. Ela fizera o sacrifício de permanecer afastada de todo o mundo e, depois de tal esforço, sentia-se responsável pela minha alma tímida e ingênua e, compreendi, seu dever, ajoelhada ao meu lado, não seria algo diferente daquilo a que se destinava com tamanho préstimo. Mais tarde, em perfeita posse da razão, pude concluir, através dos detalhes de seus relatos, que ela realmente me dissera a verdade. De que outra maneira eu seria levado até aquele local e que interesses uma velha mulher teria em se identificar como irmã de uma morta pobre, cunhada de um bruxo vítima dos inquisitores e tia de um assassino desaparecido e perseguido pelo imperador? Recuperei-me o melhor que pude e continuei: “- Meu pai nos escondeu tua existência por todos estes anos. Éramos jovens demais…” – disse lembrando-me que ele tecia comentários cifrados e reticentes quando Alermano lhe perguntava, eufórico, sobre as razões que o levaram até Pádua e como, afinal, seu pai havia sido morto. E cada vez mais, certamente por interesse próprio de meu pai, empenhado em nos afastar de qualquer perigo que pudesse nos levar aos olhos da inquisição, o assunto rareava entre suas contradições e discrepâncias, desaparecendo com os anos, mas nunca deixando de nos atiçar os interesses. E então a verdade, somando-se ao inferno que me encontrava, me atingiu como um golpe mortal e me atormentou com tamanho préstimo que, por um momento, pensei que talvez fosse melhor não conhecê-la e permanecer no sono alienado dos ignorantes.

“- Seu pai não quer vê-los relacionados ao bruxos, entendes agora a necessidade de meu isolamento?” – ela me perguntou torcendo um pano em uma espécie de bacia ao lado da lareira, de costas, para então me revelar nosso paradeiro, enquanto seu cachorro permanecia onisciente, imóvel, apreciando o calor das chamas: “- Estamos em Dijon.” – ela disse com ar brevemente contente e percebendo minha ignorância, sorriu e completou: “- França, menino, perto de Chalon. Seu pai viajou por muito tempo para trazê-lo até estes campos, desde Pádua, passando pela Lombardia, Piemonte e Val D`aosta. Nem mesmo a igreja pode nos encontrar depois do Franco-Condado e conheço trilhas próximas ao Sena que nos levaria a Champagne ou até mesmo a Alsácia e Lorena e depois de volta a Alsácia em poucos dias. Ou podemos ir para o sul, até Lyon… meus cavalos conhecem os Ródano-Alpes que poderiam ter nascido por estes caminhos! E o que me dizes de Córsega, menino?” – e ela me dizia tais coisas com um bom humor teatral, divertindo-se com minha falta de senso de localização.

Concluí, então, que aquela sombra misteriosa no fim de tarde derradeiro em minha casa era, na verdade, meu próprio pai que, armado, me livrara do destino fatal e que estive inconsciente por toda a viagem até o sudeste da França, muito mais tempo do que pudera antes supor ou imaginar. “- Então são realmente bruxos?”- disse-lhe com a voz sumida, sem saber o que pretendia descobrir com aquela pergunta, com os olhos assustados ao perceber que o galgo me fitava em silêncio. “- Somos o que a igreja chama de bruxos e o que Alermano chamaria de livres.” “- Sim! Alermano, onde ele está?” “- Seu pai disse-me que apenas conseguiu salvar seu próprio filho e que chorou ao ver Alermano sendo levado pelo cavaleiro que restou.” “- Mas como?! Como pôde deixá-lo?” – gritei, e meu ferimento me fez suar de dor. “- O estrondo que ouviu vindo da porta foi um tiro e seu pai acertou exatamente o cavaleiro que já estava morto, ele me contou. Infelizmente aquela era sua última munição e travou uma luta sangrenta com o segundo cavaleiro. Santo Deus, ele é ainda um guerreiro! Seu pai o salvou, mas nada pôde fazer para salvar também Alermano.” “- Então meu amigo foi levado… talvez esteja morto…” – disse-lhe com ar vazio, repetindo mentalmente aquelas palavras em meus pensamentos até que não fizessem mais sentido algum em minha cabeça. “- Ou talvez esteja vivo…” – destinei-lhe um olhar perplexo ao ouvir estas suas palavras e a idéia de me levantar naquele exato momento e sair a procura de meu irmão foi tão infeliz que mal me movi e senti as pernas tremerem, caindo com o rosto perto do galgo que permanecia em seu estado irremediavelmente quieto, olhando-me com seu ar sombrio, como se fizesse comigo, através de seu olhar, algum pacto sinistro. Por fim, entendera minha situação e descobri que as visões de rios e topos de árvores estranhas e minhas fortes dores nas costas deveriam ser resultado da longa viagem que travei inconsciente no lombo do cavalo de meu pai, do norte da Itália ao sudeste Francês. Mas onde estaria ele? Por que não ficara até que me recuperasse?

“- Ele voltou para trazer Alermano, onde quer que esteja.” – e, conhecendo meu pai como conhecia, foi com uma espécie de caridade cristã que a ouvi dizer isso, sentindo-me impotente e, pela primeira vez, envaidecido de estar sob os cuidados daquela mulher. Lentamente os dias se passaram, seus ângulos me atingiam de maneira cada vez mais lúcida e os fins de tarde me eram cada vez mais familiares, na cabana e através daqueles seus campos. Aquele mundo paralelo no qual me encontrei após a morte dos sentidos agora me era fruto de grande inspiração, e nele descobri novos animais como as estrelas da morte, um anfíbio de águas rasas que emanava em fortes cores em variações de verde e azul seu veneno, as raposas negras e as corujas de vôo errante das colinas ao longo do vale ao sul da cabana, os morcegos que sibilavam nas cavernas úmidas à beira dos rios de águas escuras, outras cavernas, estas totalmente inóspitas e outras repletas de insetos ignotos aterrorizantes entre suas formações rochosas formando um verdadeiro manto que parecia pulsar na escuridão, mas genuinamente apreciável e espantoso; e agora percebo que foi naquele cenário lúdico de sonhos que pude reunir e alcançar em meu corpo a força necessária para a viagem que estava prestes a travar e meus ferimentos foram tão completamente curados que aqueles meus primeiros dias de recuperação logo me pareceram como tardes perdidas e de tempo mal aproveitado, embora minha perícia medicinal não me permita a soberba de tal afirmação.

Até mesmo o galgo me destinara sua atenção nas manhãs e tardes orvalhadas em que saíamos sem direção pelas trilhas de areia úmida e tempo chuvoso, pertubando a quietude triste que se abria friamente durante os dias e renascia invencível e ameaçadora durante às noites. Mas minhas memórias de infortúnio me prejudicam com suas ligações concretas e terríveis e atrás de cada rocha esquecida eu esperava encontrar Alermano com sua lança de caça e colares de dentes de raposa, e via os contornos de meu pai, pescando num rio no horizonte como um fantasma que me sorria e acenava, distante e irreal, antes de sumir no meio de uma revoada rasante e acizentada de pombos. As poções de caráter alucinógeno de minha nova amiga, seus apetitosos cogumelos rosados e as mais diversas variações de incensos e papoulas também me causaram grande interesse e satisfação, mas minha verdadeira inspiração provinha de meus próprios sentimentos, transformados em parte pela razão, parte pelos impulsos daqueles estranhos alimentos e ervas. Desta forma, pude recriar, mesmo durante a mais fria das noites, as auroras de minha juventude, tão próxima daqueles meus dias mas, paradoxalmente, tão inatingíveis e espectrais. Às manhãs, ela se incumbia de tratar dos cavalos, criados num longo cercado de estacas altas e grossas incrustadas ao redor de um pequeno estábulo repleto de feno e barris de água que trazíamos do rio. Poderia alguém, num local totalmente estranho, num diferente tempo, com diferentes intenções, acordar da mais incerta inconsciência da alma como uma diferente pessoa?

Não posso dizer exatamente, considerando meu sono inicial de alguns dias, quanto foi o tempo passado na cabana, mas não foi muito longo, digo com certeza. Totalizadas em minhas marcações feitas no chão, na madeira ao lado de minha cama, vinte noites; e serviram para que pudesse me apossar de minhas próprias peculiaridades, orientar-me por elas e renunciar ao ínfimo grau de autoconheciemnto que possuía como fruto de minha pouca idade, como um animal que observa atentamente os movimentos de suas presas, aprende de cor todos seus detalhes de rotina e procura o momento certo para o ataque, sem desconfiança, decisivo, hostil e mortal. Foi com tais características de interesses que numa manhã ensolarada tomamos láudano produzido diretamente dos frutos imaturos de papoulas, passando pelo ópio para enfim chegar a nossa bebida; e partimos os três, ela, eu e o galgo, montando num cavalo negro e levando outros dois de seu melhores, carregando nossas escassas provisões, mas ela me alertou que encontraríamos alimentos e água suficientes ao longo do caminho de volta a Itália; além disso o láudano nos seria útil em minerais e nos inibiria o apetite através da viagem; e a cada colina vencida, cada montanha contornada, cada riacho que elevava suas águas até o pescoço de nossos animais eu sentia os venenos daquelas ervas sombrias e perigosas me conduzirem pelos mistérios das mais estranhas visões sublunares, por oásis e desertos de sentimentos desconhecidos e a minha volta vi se edificar uma grande excitação de impulsos, logo transformados em desejo de vingança contra aqueles que levaram Alermano e meu pai.

Rodrigo Monzani

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