Simplicíssimo

Aurora (VII)

VII

– Na arte de outrora, qualquer pobre, como és tu, torna-se grande

Enfileiramo-nos através de densos arbustos por uma terra de silte e argila endurecida. A princípio me pareceu que a trilha havia sido aberta não a muito tempo, pois as seivas ainda gotejavam nas pontas dos galhos irregulares e cruzados, bem a nossa frente. Chegamos até uma clareira aberta no meio do mato escuro quando fomos abordados por uma das criaturas mais estranhas. Se o demônio, conforme as lendas que percorrem entre os noviços das abadias mais isoladas, me aparecesse, transfigurado naquilo que a ele fosse o mais próximo de uma figura humana, certamente seu aspecto seria, senão o mesmo, algo muito próximo daquilo que tínhamos eu e minha companheira diante dos olhos. Um homem pequeno, de cabelos longos da nuca à cintura, mas o topo de sua diminuta cabeça era totalmente nu, tosado não por sacríficio ou penitência, mas interrompido por uma ferida viscosa e rosada que lhe chegava dali até as sobrancelhas, quase inexistentes. O olho esquerdo, deslocado e muito mais baixo que o outro, piscava num ritmo alucinado sobre as pupilas negras; e sua boca, franzida próxima ao queixo e unida ao nariz numa cicatriz costurada em V mostrava os dentes expostos, ou o que lhe sobrara deles. Vestido com uma longa túnica de um corte apenas, trazia uma sacola nas costas, repleta de novelos e agulhas alongadas, montado num jumento com dois ou três pequenos tapetes muito bem bordados, no lombo do animal. Nos apresentamos, mas o homem apenas nos olhava com seu ar perplexo e ingênuo, emitiu alguns ganidos, mas nenhuma palavra antes de retomar o caminho de onde viera numa velocidade espantosa para um jumento, ainda que selvagem. Seguimos a trilha deixada pelas suas pegadas e após alguns breves comentários, lembro que disse que aquele era o homem mais assustador que vira em toda minha vida, no que a mulher me respondeu: “- O julgamento das aparências conduz a apostasia, segundo o Eclesiate.” – e então continuamos o caminho em silêncio.

Chegamos até um pequeno muro, ou o que restara de uma antiga muralha de tijolos colocados sem nivelação, como num mosaico, incrustados entre duas rochas que nos impedia a visão para além de uma pequena porta de madeira, esta bem mais nova e com dobradiças de aço, fechada. Ouvimos uma grande gritaria enlouquecida e a curiosidade me impeliu porta adentro, que não estava trancada. Era exatamente ali onde as pegadas de nosso estranho predecessor terminavam, já que após o muro o chão não era mais argiloso e sim de terra batida e mais dura. “- Os Corsos!” – exclamou a mulher logo atrás de mim, enquanto olhávamos perplexos um verdadeiro carnaval de cores e bebedeira. Em tempo: conforme depois me explicara minha curandeira, os corsos eram um dos povos minoritas das regiões centrais da Europa. Eram os verdadeiros herdeiros dos costumes imperiais de Roma, há séculos, e aquele festejo era como uma versão atualizada da igualmente licenciosa Saturnália – a festa em honra do deus pagão Saturno, que durava vários dias, sob chuva, vento ou sol – quando os costumes por demais barrocos eram postos de lado e as distinções entre as castas e regimes sociais eram abolidas. Assim, aquele carnaval era um vivo exemplo do espírito e senso teatral daquele povo e dos restantes europeus também, inatos e instintivos, o que lhes dava uma espécie de continuidade cultural e uma estreita relação com seu passado mais profundo. No que me disse a mulher, corso significa “caminho de corrida” o que não entendi muito bem até ver os cavalos bérberes selvagens que eram preparados e conduzidos entre os gritos e aclamações de uma pequena multidão. Prendia-se tiras de lantejoulas em seus dorsos e, para enfurecê-los e instigá-los, bolas de chumbo cravadas de agulhas alongadas eram penduradas em seus flancos.

Foi então que revi o estranho homem na confusão e percebi que as agulhas penduradas nos cavalos eram as mesmas que ele trazia nas costas, em sua sacola com os novelos. Nos reviu também ele, no que apontava insistentemente em nossa direção a um homem gordo e de olhar bovino, que logo nos chegou com seu andar desordenado e curioso. “- Quem são e de onde?” – nos disse secamente e vi que o brilho de seus lábios provinha da gordura de um generoso pedaço de frango que trazia na mão direita, um cálice cinza de vinho na outra. Nos apresentamos brevemente, contamos a respeito da pedra na ponte e como chegamos até ali, seguindo o anão. “- Goldoni?!” – ele exclamou nos revelando o nome do pequeno, para então descarregar uma farfalhante gargalhada e pequenos restos de carnes e fósseis do que antes era um frango, direto de sua boca luxurienta e encardida. “- Não nos disse nada na trilha, apenas se virou e saiu a toda.” – respondeu a mulher, vendo que agora não havia mais motivo para formalidades. “- Goldoni é mudo, ou pelo menos sempre nos pareceu ser. Dizem que compreende cada palavra que ouve, mas nunca se ouviu sua voz. É um pobre, cuida dos cavalos para a festa. Vê os tapetes, as agulhas? É trabalho seu.” – ele nos apontou com um movimento com a cabeça na direção da desordem a nossa frente, enquanto acariciava com o braço o focinho do galgo. Os cavalos estavam, aparentemente, quase prontos, adornados pelos pequenos tapetes (e não eram selas, mas sim verdadeiros tapetes), e então seguia-se uma luta furiosa com os cavalariços tentando conter os animais, até que, a um sinal, dava-se a partida e os cavalos arremetiam desordenadamente trilha abaixo. Na linha de chegada, outro grupo de cavalariços era encarregado de capturar e controlar os animais enlouquecidos. “- Eu sou Cosmati, se precisarem de algo, avisem. Aqui só não somos hospitaleiros com os mercenários. Bastardos!”- e ele se foi, não antes de soltar uma cusparada destinada a seus desafetos.

Continuamos apreciando a comemoração e passamos por foliões fantasmagóricos que empurravam pequenas carrinholas que imitavam o formato de gôndolas, deslizando até os grupos do festejo. Havia mascarados, ladrões de maçãs (e devo confessar que até mesmo eu declinei a umas boas quatro frutas), trapaceiros nos carteados e amantes que tragavam cachimbos de bambu alongados e que namoravam frente à mapas que retratavam o mundo em frescas pinturas fora de escala, enquanto um corso forte e pintado à pele, ostentando grandes feixes de plumas iridescentes em seu chapéu de montanhês, negro, ressoava um tambor de couro, indo de um lado para o outro, tendo um pequeno mico africano amarrado ao pulso, vestido de palhaço, anunciando aos gritos: “- Venham todos, as peças irão começar!” As peças a que ele se referia eram versões de improviso que até mesmo nestes dias sobrevivem, especialmente na região central da Europa e na Sicília, como uma próspera tradição que, como toda boa tradição, pouco mudou em séculos. Eram encenações com marionetes pintadas em vivas cores e que mediam cerca de setenta e cinco centímetros, chegando a pesar, julguei pelo tamanho, até cerca de vinte quilos, sendo assim manejadas por possantes operadores ocultos no feno acima dos pequenos palcos rodeados de trufas maduras, através de hastes de ferro e cordéis. E eis que eu, o galgo e minha curandeira vimos que entre aquele repertório incluiam-se marionetes de cavaleiros, totalmente equipadas e capazes de desembainar as espadas de feltro – contra serpentes de olhos arregalados, rinocerontes montados por homens negros, vilões, gigantes, um boi de seis asas, chimpanzés de olhos avermelhados e mouros – na defesa da verdade, da justiça e da honra de belas donzelas que cavalgavam em cavalos como aqueles que havíamos visto na corrida. Impressiona-me como agora posso refletir de maneira mais lúcida sobre aquilo que vivi naquela aldeia de tão doce hospitalidade, comparando a experiência aos livros que encontrei pela vida e que tanto tentaram me acudir em minha solidão. Reconheço hoje, naquelas encenações, uma de minhas histórias literárias prediletas, a de Orlando Furioso, adaptada genialmente por Ariosto em meados deste século a partir da lenda do cavaleiro Orlando e suas batalhas contra os inimigos da cristandade.

Uma representação que pude presenciar na aldeia, aturdido com sua beleza e perfeição dos títeres, foram as chamadas Vésperas Sicilianas, que mostram o grande massacre dos invasores franceses pelos sicilianos, em 1281, evocando um dos capítulos da constante luta da ilha contra os opressores externos; e vi que até mesmo o mais bravo dos corsos, inclusive o glutão Cosmati que tão bem nos recebera, chorava nesta apresentação que evoca sua sede apaixonada por justiça e vingança. Depois, atores amadores tomaram a cena no centro de uma pequena multidão e improvisavam a partir de cenas do cotidiano – um homem rico enganado pelo criado esperto, que por sua vez foge com a bela donzela, a meretriz arrependida e tantos outros estereótipos. Os enredos me parecem, agora, secundários, pois o que importava era ritmo ágil, a surpresa e as engraçadas situações criadas por aquele singular elenco, um mínimo de oito personagens recorrentes representando as fraquezas e extravagâncias humanas. Havia Zanni, o criado engraçado: inteligente, ganancioso e sem escrúpulos, vivia revoltado com a injustiça e opressão. Uma das variações desse personagem era o astuto Arlequim, um servo que jamais largava um rabo de coelho, símbolo de sua coragem e que trajava um casaco de remendos coloridos; outra variação era o grosseiro Polichinelo, com seu nariz adunco que deu origem a tantos outros personagens europeus, folclóricos. E não poderia deixar de citar o teimoso Pantaleão, um comerciante veneziano cheio de empáfia e um capitão conhecido por nomes diferentes como Spavento, Giangurgolo ou Rogatino, um covarde dos mares com seus ares de valentão, sempre alardeando façanhas passadas. Do lado feminino, havia a bela Colombina, interpretada por uma jovem de incomensurável beleza, encantadora e atrevida com seu decote arrebatador que acrescentava àquelas farsas escandalosas uma pitada de paixão e sensualidade.

Hoje, em minhas memórias e visões (e não posso dizer se na verdade são sonhos ou delírios) aqueles personagens fictícios se confundem com os verdadeiros de minha história, possuem personalidade e até mesmo o ar bolorento de minhas lembranças mais pessoais. Ao buscar as origens desses personagens em minha imaginação, descobri que seus progenitores eram bem anteriores à astúcia de minha própria criatividade, e aqueles como o vigarista Marcus, o louco Manducus, o glutão Pappus, o velho malandro Dossennus originaram, acrescidos de detalhes artísticos que lhe foram atribuídos através do tempo, a Renascença, sem, entretanto abandonar a aspereza rústica de suas formas e conteúdos satíricos. Mas como me perco por estas paixões digressas na arte! Após o encantamento corsense, voltamos, dentro de sete dias de descanso na aldeia, a nossa empresa, mas não antes de termos, eu e o estranho humano que atendia pelo nome de Goldoni, que até então todos consideravam mudo, um singular colóquio.

Rodrigo Monzani

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