Simplicíssimo

Aurora (XIII)

XIII

– És mil platôs e, ao mesmo tempo, nenhum

Andamos durante dias contra um vento que movia os arbustos em ondas geladas, murmurejante nos campos de rosas brancas que se assemelhavam a infinitos olhos humanos que pareciam chorar, pendendo de um lado a outro em rítmica harmonia. Lembro-me de todas flores formosas daqueles campos, violetas que sorriam para um vale onde ninguém vivia e toda a vegetação rasteira e espaçada onde o sol parecia dormir, avermelhando aquela tumba desconhecida. A sede da ansiedade de chegar ao mausoléu da família Locci era apaziguada com os colóquios que tivemos eu e minha curandeira com os peregrinos, mas por maior que seja a força daquelas histórias, sua compilação hoje se torna confusa, parte devido a minha velhice de agora, parte devido a própria confusão inerente àqueles diálogos profanos que pareciam se deslocar como o vento, invisíveis. De fato, as histórias podem ser muito diferentes, dependendo da boca de quem saem e dos agires que podem articular. De tudo que com os anos desapareceu e desaparecerá (os livros que li, as pessoas que amei, o próprio “manuscrito” apócrifo que escrevo) restarão apenas… histórias invisíveis. E se restaram essas designadoras de idéias perdidas, elas, em verdade, não estão perdidas, mas persistem, adormecidas, porém vivas. Seriam então, estas histórias, a Verdade perene, então? Há alguma Verdade perene? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus”, como disse o velho em trajes monasteriais no primeiro dia em que tomamos parte daquela peregrinação, reafirmando o poder desse Verbo.

Sob essa ótica, percebo agora, é interessante notar que somente ao homem foi conferido esse dom, o de verbalizar histórias, o que nos aproximaria do divino, mas no meu caso, as idéias vão ficando mais indisciplinadas à medida que a interpretação se aprofunda e minha mão que concretamente as contextualiza quase não as acompanha, por isso as esqueço. Talvez nunca mais me lembre das histórias que ouvi e continue a batalhar como um que tenta impedir a interpretação de tudo, lutando contra a necessidade de acontecimentos falsamente impactantes, estranho imperativo que valida interpretações preexistentes. Ou talvez por não buscar e, em mil platôs, negar estas interpretações estereotipadas e preexistentes, minha mente tenha se negado a lembrar de tudo, a procura apenas do sentimento mais natural possível, sem razão para boas ou más mentiras, trazendo à tona, em meu silêncio ausente, o que foi principalmente sentido e não o que somente pode ser lembrado. E então minha memória passa a ter sua própria personalidade endiabrada, e contra ela mesma eu tenho que lutar também, não querendo ver o que vivi mas não esqueço, querendo reviver o que foi ou poderia ter sido bom, mas em minha ingenuidade, já não lembro. A memória deveria ser um dever do sentimento, mas, infelizmente, é o que sentimos que depende das recordações, censurando, perseguindo e condenando minha infinita capacidade de sentir à pobre memória finita que tenho e que cria esta segunda imagem de mim, este espectro que escreve para fugir de si mesmo numa trêmula nudez, sem anseios, sem sorrisos, através de um espesso rio revolto chamado solidão. Ou talvez ainda, as memórias, lembranças e recordações não existam. Talvez a mente seja movida pela simples vontade de se mover ao redor daquilo que apenas existe e pode ser tocado. E é neste jogo de poder com minha memória que lembro que chegamos à base de um penhasco que precedia uma cidadela, escondida momentâneamente pela névoa fria, confinada nos limites do penhasco escuro que se erguia cinza e obtuso ao nosso lado. Notei que as porções de terra à base do penhasco pareciam não remexidas, mas diferentes de qualquer arranjo natural que fosse e deduzi que ali, senão o homem, alguma força obscura havia agido para enterrar (ou desenterrar) algo de grandes proporções, porém nada é mais fácil nos enganar sob a névoa do que as apreciações dos tamanhos e o isolamento do local, sua falta de luz, o vento frio que o parecia mover em deslize aumentavam a distorção visual e seus ruídos estranhos de seus vãos complementavam tal plano de entendimento oculto e desenganado.

“- Vês a terra disforme à base do penhasco?” – minha companheira me perguntou, e explicou-me que ali haviam enterrado dez mil cavalos juntamente com seus guerreiros, mortos em guerra. “- As guerras da Liga são dos tempos heróicos destas terras!” – ela exclamou com olhos brilhantes de espírito e entusiasmo. Cartograficamente, eu poderia aqui denunciar o local pelo qual passávamos, o nome e localização precisos da cidade, mas se assim o fizesse, estaria, penso agora, individualizando o que tento fazer funcionar em conjunto. Personagens, lugares, onde e quem devem criar espaço para diferentes interpretações para que possam dialogar entre si, são todos, de alguma forma, construídos para funcionar numa macroestrutura cuja marca principal é a intertextualidade e a interdependência, o que se perde, no caso dos lugares, com títulos e nomes próprios. Desta feita, manterei o local sob a atmosfera obtusa do anonimato e, de certa maneira, será assim que o que escrevo se projetará muitas e muitas vezes, através da imaginação proporcionada pelo mistério, sem a angústia de ser original, deixando para trás os insossos e românticos para que a trama ganhe vozes cujos ecos soem o tempo todo, através dos gritos dos que a lêem de diferentes formas e que muitas vezes tentam falar ecoar no silêncio. Segundo me confidenciou a velha senhora do pífaro, não ficaríamos na cidade, apenas estávamos de passagem de modo a renovar as forças e as provisões de alimentos. Busquei caminhar pelas ruas de terra e grama, me distanciar daquelas estranhezas e fiz um sinal para que minha curandeira esperasse meu retorno antes da partida.

Caminhei só durante algum tempo enquanto avançava o fim da tarde e os poucos moradores locais não me fizeram quaisquer honras, Avistei, a certa hora, um torreão em ruínas que me pareceu central à cidade, único e circundado por diferentes construções de pedra. Era uma antiga igreja de múltiplas janelas, o que fazia a nave principal se iluminar de uma maneira difusa ainda ao fim da tarde. Estava abandonada, mas ainda havia os vitrais desfocados pela poeira, algumas imagens de santos semi-encasuladas por teias de aranhas que percorriam seus mantos puídos e velhos, as bancadas manchadas se encontravam fora de qualquer ordem e havia um saltério de imagens esculpidas nas paredes: pequenas cabeças desenhadas em forma de pés de pássaros, animais com olhos humanos nas costas, peixes zebrados e dragões de duas cabeças, bípedes de pescoços serpentino que se entrelaçavam em nós, macacos que seguravam gaiolas onde os pássaros se jogavam direto do céu, homens corcundos com chifres cervinos, vacas com rabo de galo e asas de borboleta, monstros de duas cabeças, enormes insetos com rabo de peixe, elefantes que defendiam uma arca atacada por ovelhas negras, centauros, um monge que descansava sob uma árvore estranha rodeada de anões, duendes que cavalgavam gansos azuis, peixes que pescam gaviões no céu, ursos que voam e três mulheres nuas presas numa jaula bicadas por um negro galo gigante, tudo retratado com tamanha perfeição artística que pareciam estar vivos, marginalias ainda mais eloqüentes no silêncio, iluminadas pelo sol filtrado nos vitrais quebrados onde alguns pássaros fizeram seus ninhos. Após a vertigem que me causara observar tais obras, recuperei os sentidos anestesiados a tempo de ver um livro de dimensões incrivelmente reduzidas, esquecido sobre uma das bancadas desniveladas e corroído pelos cupins. Havia em suas páginas um compilado de anotações desbotadas, de onde pude entrever a sombra de uma ou outra palavra em latim, o rastro de um ou outro verso e, em suas raras folhas legíveis, existiam versos que agora me tomam a força de um verdadeiro e exasperante estado de espírito, inextricáveis de minha memória:

“O Vernáculo”

I

“Nos mais altos rios gelados de absinto rodeados por corvos falantes e anjos maus, antigamente um grande e palaciano labirinto se erguia, no Vernáculo, em mil degraus. Seus muros intermináveis eram, E suas flores pareciam chorar devido a isso Espalmado por mãos que lhe deram A forma irregular sob mil pétalas e viço.

II

Seus portais velados na eterna noite Flutuavam entre as estrelas eternas E sobre elas havia ecos de morte Soprando pálidos uma brisa de inexcedível beleza em cada brisa suave também soprava, o grito de soldados de vento daquele doce Vernáculo, ao longo dos muros pálidos e empenachados, se elevando num aroma alado.

III

Caíam no Vernáculo as pérolas e rubis dos portais espíritos se moviam musicalmente ao som de um alaúde bem afinado, suas janelas iluminadas ganharam do silêncio escuridão, nada mais, em torno de um trono onde florescia o corpo de um monge já sepultado

IV

E de seu refulgente traje rubro Gratos pela missão de cantar a história por ainda vir Florescem e saltam à visão, sem cessar, seres angelicais de luto Caminhantes eternos do Vernáculo onde nunca hão de sorrir

Rodrigo Monzani

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