Simplicíssimo

Barco na enxurrada.

Quando vi Mariana Descacciati passando de costas na frente do bar, pensei que fosse miragem. Apenas impressão. Quando ela voltou e me reconheceu, eu acenei e ela veio até a mesa. Coisa inconcebível há tempos atrás era eu chamá-la para tomar um copo de cerveja. E, no entanto isso acontecera. Estes são os ossos do ofício de quem vive e admite a efemeridade das grandes coisas; que juramos ser para sempre, mas que se vão com um sopro…, Barco de papel na enxurrada.

E a enxurrada lavou minha alma.



Reparei bem em seu rosto limpo, seus dentes não muito bonitos. O corpo magro, sem as unhas roxas, as mechas vermelhas de cabelo e a saia xadrez com os quais antes eu pintava o seu mito. A voz fraca, o jeito que por pouco não denunciava sua passividade fantasiada parcamente de doçura quase me confundiu, se soubesse eu um pouco menos sobre a vida de uma outra Mariana Descacciati, uma menina construída em minha mente, muito distante da realidade. A doçura dela; minto, a do mito Discacciati, doía em mim com a amargura e a verossimilhança que só uma alma inocente ousa crer. Mas naqueles tempos, tomaram-na de mim, pouco a pouco, com mentiras e aridez, sem que eu me desse conta exatamente do que acontecia comigo… Talvez agora isso sequer venha ao caso. É algo sem importância, afinal. Aquela vida não me pertence mais. Esta vida de agora me é muito mais viva.

[…]


Coisas de quem admite a efemeridade dos amores eternos e puros. E eu, criança e apaixonada, sofria. Mariana levava meu amor e minha confiança embora. Era um fantasma, um pesadelo, que me tirava o chão, que me lançava ao desespero. Mas a enxurrada levou Mariana. E em menos de dois minutos, muitos anos, dores, lágrimas e lembranças se passaram entre meus olhos e minha memória, (exatamente nesse limbo obscuro que se esconde durante a maioria do tempo em que estamos de olhos abertos…) […] enquanto meu copo de cerveja esquentava, suava, borbulhava. E olhando para ele pensei, sorrindo, que havia sobrado muito mais de mim do que me tiraram […], e que o amor que eu pensava sentir um dia, estava ligado a uma idéia mitológica, caricata, de um algoz fictício. Seria aquilo amor ou algo confundido com uma espécie de despeito, inveja talvez, de uma menina esguia, tão calma e limpa, tão desbotada, quiçá fraca, e de uma beleza tão comum, essa beleza rala de quem sempre teve tudo tão claro e fácil, e que, entretanto havia tido poder estrondoso e absoluto para me torturar por tanto tempo, sem que ela mesma o soubesse. Poder este que eu mesma havia lhe dado. Poder este que eu havia escolhido para ela, e fatalmente este sofrimento para mim, por algo que nunca me mereceu ou pertenceu de fato.


Mariana se despediu e desapareceu na avenida. Disse que iria se encontrar com o namorado, que morava próximo. Foi embora com a rapidez de uma chuva de verão, que cai depois de uma tarde abafada e quente, parecendo nunca ter fim. Sua bolsa vermelha, a cara lavada, tudo era uma chuva passageira. Seu aperto de mãos e seu sorriso foram justamente o rastro de frescor e alívio que a chuva dos dias quentes deixam para trás. Respirei fundo, tomei o resto da cerveja. Mariana não havia me tomado o amor e a atenção daquele menino tão sensível, tão surreal. Primeiramente porque não se toma de alguém aquilo ele não tem, e depois porque esse garoto do qual falo simplesmente nunca existiu. Um dia sua máscara fina e doce, tal qual como o açúcar fino dos meus sonhos antigos, cal das ilusões, derreteu-se na chuva do rompimento, revelando uma face deformada, falsa e profundamente injusta em seu interior, que no menor revés se tornava monstruosa, cruel, decepcionante.


Até ontem eu não acreditava plenamente nisto. Quem sabe o problema estava em meus olhos, e não naquele rosto que fora tão familiar? – eu pensava. Percebi então que havia me libertado, me libertado de uma maneira pela qual eu nunca havia sentido outrora: eu não senti mais saudades do passado. Eu o vi de forma tão lúcida, tão exata que não houve tempo de melancolia. Nem mesmo o lamentei. Quando vi Mariana, pude ver tudo o que se passara comigo naqueles tempos. Ela era o resumo daquele passado, e assim como ele, era muito menos do que eu havia lhe atribuído em poder e significância. Limitei-me a sorrir e esquecer, desta vez não por esforço ou necessidade, mas por conseqüência natural da efemeridade e da insignificância das coisas que julgamos tão importantes em certos momentos da existência. Dessa forma Mariana foi embora, deixando frescor e paz no meu coração inquieto, totalmente desacreditado de que o que eu havia pensado sonho, era feito de lixo. Lixo, apenas. Sim, o açúcar era cal, veneno insalubre. Ela era o retrato e a sensação de tudo ao mesmo tempo, com a serenidade, calma e sutileza; sem gosto, sem sentimento algum para mim. Tudo era apenas menos… Menos…, Com alívio. Mariana carregou toda reminiscência de cal. A enxurrada lavou minha alma, deixando todas as coisas em seu devido lugar.

Raquel A. Drummond

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