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O Versículo de Joana – Parte I

O Versículo de Joana (parte I de II) – por Rodrigo Monzani

“Quem, se eu gritasse, entre as legiões de anjos me ouviria?” (*)

Rainer Maria Rilke

“Crenças, rituais, bruxarias, convulsões… cores, vertigens, oráculos, magias… desejos, solidão, acaso e morte dançam frente à visão humana e confundem o entendimento, minha cara.” – foi o que a madre Sofia disse, trêmula, insegura, com uma lágrima contra sua face pálida, sussurrando durante o demorado abraço de consolo a sua amiga Joana, quando da morte de seu marido. Sofia sabia o quanto curiosa é a cegueira, capaz de transformar dificuldades concretas em questões espirituais que determinadas pessoas têm para certos tipos de problemas. Tom, o marido de Joana, era uma dessas pessoas, uma mescla insolúvel de magnitude, inocência e falsa malícia desafortunada; sempre foi assim e talvez devido a isso, mesmo depois de sua morte intrigante e pertubadora, ainda fosse lembrado com tamanho carinho pela esposa.

Em vida, sua inclinação por incensos, ervas naturais e pelos rituais de bruxaria nunca foram segredo para a família, mas curiosamente se tornaram um dos grandes após sua morte. Os O’Neall possuíam uma estranha tendência de tornar pura, inviolavelmente inocente toda criatura de quem gostassem, mas a verdade é que a idolatria póstuma por Tom existia apesar e por causa destes fatos.

Embora seus hábitos possuíssem um caráter obscuro e difuso, salvá-lo destes demônios era uma missão, um dever familiar a ser executado custasse o que custasse, mesmo que isso significasse entregá-lo à inquisição. Desta forma, velados e misteriosos, os esforços – por vezes violentos – para encobrir tais tendências coexistiam com sua convivência fraternal.

A tragédia que plastificava sua memória era profunda, arraigada nas mais diversas explicações que teimavam em perambular pelos obscuros corredores das mentes de seus pais ou até mesmo de Joana, mas nunca vinham à tona. Todos imaginavam que o silêncio seria sua fortaleza, mas na verdade não passava de uma vela solitária que de quando em quando iluminava seu desespero, sua decepção, a incongruência de fatos acerca da tragédia da morte e uma saudade impecavelmente concebida pelo remorso. À morte sempre acompanha o remorso e, no caso de Tom, uma história secreta.

Joana decidira se tornar freira desde então, a única saída para seus tormentos pessoais e para as lembranças que a conduziam a um vácuo impertinente de realidade onde nunca conseguira diferenciar a felicidade do malogro, como se ambos fossem a mesma coisa. Passou a viver num mosteiro, o mesmo de sua amiga madre, tentando se afastar das lembranças cristalinas, maravilhosamente cruéis a respeito do marido, uma atmosfera que se formou não por condená-lo por seus pecados, mas pelo simples fato dele estar morto, levado indefeso pelo anjo cego da expiação.

Meses se passaram. Joana tremeu quando pensou ter ouvido um som de risada vindo das colinas enquanto olhava com olhos estáticos e perdidos para o esqueleto desfocado de uma árvore com o tronco entreaberto. Sentiu um som morto em seu espírito, um horror vago e ambíguo, atroz e penetrante que lhe dava a clara impressão de ausência moral, um sentimento que rapidamente se converteu e modulou uma intensa agitação interna que tratava de ocultar já há tempos.

Refletidas nos rochedos, as luzes do céu prenunciavam um fervor em seu coração, nada sequer comparado à atmosfera fria e turva que parecia pulsar dentro dos cômodos pálidos e entre os inúmeros degraus do mosteiro onde vivia. Desceu triste a enorme escada que desembocava em Félix, um urso negro que há anos jazia tapete de luxo abatido pelo agora cardeal Gouvarel, passando sob o rifle que permanecia como artefato de admiração na parede, preso por presilhas douradas que imitavam as rosas que nunca brotaram no jardim, apesar das preces. Quando adormecia na poltrona de seu quarto, encasulada no denso silêncio das tardes, Joana costumava sonhar com Félix a carregando em suas costas dentro de um grande circo vazio onde as duas únicas criaturas na platéia eram um poeta e um vampiro que conversavam tomando chá e ajeitando suas cartolas de lã vermelha.

Implícita na monotonia do lugar, havia hostilidade centralizada no caminho ladeado de carvalhos e coberto de gelo que levava até a porta principal, fazendo com que no estilo gótico exagerado do mosteiro, a religiosidade não parecesse acolhedora ou sequer real, mas sim lunática e delirante, uma atmosfera turva que ganhava vida sob as duas torres negras que cuspiam a fumaça dominical; e isso, para Joana, era um dilema indigno de compreensão. Ela percebera precisar de um certo tipo de magia que zombasse da rotina e do medíocre sem as perdas e angústias de um ato de contrição, como um crime sem castigo, sem cúmplices e sem choro, frio, cristalino, científico, tudo calibrado num sentimento genuinamente estranho para uma freira como ela. Joana queria gritar, mas quem, se ela gritasse, entre as legiões de anjos a ouviria?(*)

Sua rotina era cuidar dos filhos de fundamentalistas fanáticos, magos, ateus, ciganos e toda a escória da sociedade segundo os cléricos. Ela os considerava órfãos herdeiros dos novos tempos, ingenuamente diabólicos sob os ideais cristãos da época. Naqueles idos do século XVI, o humanismo ateu parecia ser a última palavra à maturidade intelectual, tornando nítidos os contornos que diferenciavam os sentidos místicos da fé e do divino, porém Joana não procurava uma simples explicação aos novos tempos, mas sim o sentimento mais natural possível e o encontrou ao conhecer a filha de uma bruxa, menina de 12 anos chamada Ivone.

A calma transparente e infantil dos olhos da pequena triunfava sobre o discreto charme da prataria ruidosa, das poltronas de veludo e das demais expressões da estética cristã, resumindo um misto sublime e arrogante que aos olhos de Joana eram mais um labirinto de interpretações, um brilho no escuro, uma vazão de sentido comparado ao vazio depressivo que pairava no ar, distinguindo a nobreza dos maneirismos e o silêncio cativante do espírito de Ivone do restante homogêneo de crianças do mosteiro; fato que lhe servira para camuflar o traço trágico que o destino de sua mãe, queimada há três dias, lhe deixara.

As tarefas da menina eram realizadas com perfeição espantosa e ninguém além de Joana percebera que seu comportamento irrepreensível era revestido por uma sombra discreta, porém eloqüente que dava à menina um encanto quimérico, afinal, por que as demais crianças não se aproximavam dela, como Ivone conseguia arrumar seu quarto tão rápido e com tamanha perfeição (lençóis impecáveis, travesseiros guardados no alto de um armário de madeira que nem mesmo um homem alto alcançaria com facilidade, chão luminoso e móveis sem vestígios de poeira ou qualquer coisa fora do lugar), como conseguia fazer a sua horta, cultivada nos fundos do mosteiro, crescer tão bela diante do fracasso das demais nos dias de verão, por que ela nunca sofrera com os mosquitos nestes mesmos dias enquanto as demais crianças choravam com as picadas e alergias, por que nunca ficava doente no inverno, como podia conhecer a Bíblia e tecer comentários sobre os evangélios de maneiras tão profundas e pertinentes nas aulas diárias de catecismo? Por que estranhas mortes começaram a ocorrer no mosteiro desde a sua chegada?

Nem mesmo a intervenção do cardeal pôde reconfortar as almas. A despeito do choro das freiras, nada de relevante quanto ao corpo escalpelado de irmã Hilda, quanto ao desaparecimento de irmã Dulce, deixando em seu quarto uma mancha vermelha no teto que gotejou um líquido viscoso por dias e a respeito do cadáver decapitado de madre Sofia, encontrado na cozinha, foi averiguado nas investigações. Desta forma, os crimes foram prontamente submetidos à capa do silêncio, ganharam a atmosfera de mistério e segredo intravenosos que sempre circunda os fatos desta natureza e, apesar do isolamento, Joana e a menina se tornavam cada vez mais próximas. Foi quando Ivone passou a mostrar – lhe o que era capaz de fazer.

Rodrigo Monzani

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