Simplicíssimo

Carpe Diem

Sucederam-se meses difíceis de uma jornada que não fora nada fácil até agora. Era uma individua frágil, de suscetível condição. Órfã de pai e mãe, cedo ficara amiga da solidão e dos sonhos impossíveis, tratando-os como a iguais. Gostava absolutamente de tudo que contivesse um ‘não’ implícito – um desafio a sua conhecida teimosia. A avó batizara-lhe em pequena e, desde então, tomara-lhe por cria. E era uma outra que adorava um bom quebra-cabeça. Da neta cuidou da asma à bronquite, passando por caxumba, sarampo, catapora e rouquidão. Detectara-lhe todas as alergias. Agonias de criança sem pais e sem solução… E a neta era miúda e graúda era a missão. Do lado escuro da vida, soube-se vaga-lume. Mariposa nunca, não.

Juventude de prognóstico medíocre e de modesta alteração. Vieram-lhe noivos. Mais de um e um casamento sem a ver com destino. A avó lhe dizia não e a menina teimava por um sim ‘atalvezado’. Então. Talvez desse certo se fossem para uma outra casa. Foram. Talvez não acabassem se fossem viajar. Viajaram. Talvez melhorassem se tivessem uns filhos. Tiveram. Talvez não se odiassem se ficassem mais longe. Ficaram. Talvez se amassem melhor quando os filhos crescessem. Cresceram.  E eles foram. Viajaram. Tiveram. Ficaram. Cresceram.

Buscou no caminho menos pedras que argumentos. A vida trouxe-lhe complementos. Mas nada lhe prometera. E, se agora lhe exigia despudoradamente, revezava-se para cumprir horários, refazia-se em agendas difíceis e entregava-se a pautas impossíveis. Não havia quem não duvidasse daquela figurinha de débil saber e saúde duvidosa. Fosse quem fosse, admirava-se de sua força e suas idéias. Desfazer-se de não’s implícitos. Uma meta após a tese. Era perfeito. E não adiantava dizer-lhe ‘não’. Antes um sim ou, pelo menos, um sim ‘atalvezado’. Aprendeu a interpretar o idioma que jaz na vida. Negativas devem servir de aprendizado, senão, positivam-se. Prometeu a si mesma CARPE DIEM como regra. Trocaria, vida afora, muitos não’s por muitos sim’s. E trocou.

Aproveitar cada dia como o último dia, tem sido mesmo a beleza da vida. De uma antiga ficha do hospital, observam-se as folhas esmaecidas pelo tempo e pelo uso constante. Ultimamente, não lhe sobra tempo para mais nada além de boletins médicos, radiografias, tomografias, ultra-sons e meio milhão de diagnósticos nada incentivadores. Há tempos, um episódio hemorrágico de certa periculosidade, deixou-lhe ‘de brinde’ o coágulo instalado no cérebro. Difícil intervenção. Tudo tentado. Não revertera-se o quadro.

Mais um não da vida. A menina apenas sorri. O especialista desfere um último golpe: "Talvez seja necessário uma intervenção cirúrgica de urgência ante os constantes sintomas". Paciente, ela sorri. Certo, doutor. Mas o senhor viu isso ontem. Hoje, vamos fazer novas radiografias. CARPE DIEM, arremata. Hoje estou melhor e o senhor não acha que mereço mais que uma investigação? Corajosa, deixa a ala ambulatorial e segue para mais um centro de micro-imagens. Tomará um daqueles contrastes intravenosos doloridos e dormirá a tarde inteira. Um novo desafio se avizinha. Mais um não que pode ser Sim.

O médico, que ainda não entendeu aquela menina e crê que nunca a entenderá vê no coágulo é um não bem grande. Mas, e o humor? Não é um sim ‘atalvezado’? Talvez. Talvez a vontade de viver e a gana de sorrir de tudo (até muito de si mesma) seja a resposta. Talvez. Quem sabe gostar de ser gente e não uma estatística seja o seu segredo. Quem sabe. Será que ter um mundo próprio, repleto de coisas só suas é o caminho? Será.

Estilhaços de vida se transformam luminosa amplidão quando bem acolhidos. Nenhum mundo é tão pequeno que não possa ser infinitamente cheio de respostas. Talvez  respostas erradas dadas a perguntas erradas mas amanhã pergunta-se de novo. Há outro dia? Ótimo. Mas hoje, ninguém morreu de viver tanto. Morre-se muito é de viver pouco. O sim ‘atalvezado’ é o melhor prognóstico que alguém pode ter num dia. Quem o inventou? Foi aquela menina. Que menina teimosa, que vida! Ô menina enviesada, meu Deus!

Lilly Falcão

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