Simplicíssimo

Os Templos Sagrados e o Horror da Minha Ignorância

Há tempos queria me manifestar sobre a estranha sintonia de três comunicações que recebi há alguns anos: duas de filósofos e uma de uma preceptora minha que iniciava-se então nos mistérios da psicanálise.

O filósofo número 1 era um psiquiatra estudioso daquele que talvez seja o maior motivo de orgulho entre os filósofos-psiquiatras da história: o bem-amado Karl Jaspers. Pois certa vez falava-me ele do autor de "Psicopatologia Geral" em um desses intermináveis plantões que ocorrem de vez em quando na vida de alguns homens. Caí na besteira de dizer-lhe que o nome de Jaspers me era conhecido dos tempos de colégio. "Vocês estudavam isso pra quê?", disse-me desdenhoso o douto senhor. Prudentemente, nada respondi. Como prosseguir? Meu livrinho de filosofia para estudantes do 2º grau citava umas frases do cara, só isso. Eu me lembrava do nome, mas nem sonhava me lembrar do conteúdo das citações. Na época eu não dava importância maior à filosofia, e suspeitava de uma aura marxista que percorria aquele livrinho irritante do começo ao fim. (Mas estranhamente a profi parecia me levar a sério. Devia ser por benevolência, pois nela havia exatamente o mesmo sorrisinho de superioridade intelectual do meu douto doutor em Fenomenologia).

O filósofo número 2 pegou-me em fase diferente da vida, mas eu ainda era dado ao mesmo tipo de asneira, que passo a relatar aos senhores. Estudava na época alguns rudimentos de psicoterapia de grupo e esbarrei no nome de um cara chamado Bion. O tal Bion era muito elogiado nos meios que eu freqüentava, e eu queria entender por quê. Obtive repostas parciais, e minha parca memória pouco me vale neste momento solene, mas o fato é que algum livro me falou da influência do Kant na obra do Bion. "Pronto", pensei, "vou atrás do Kant: um estudante aplicado deve fazer coisas assim de vez em quando".

A coisa em si foi triste, não passando dos prolegômenos, mas foi mais triste ainda o que tive de ouvir do meu interlocutor número 2: "e tu vai ler isso pra quê?" A pergunta me irritou, mas como as coisas em si não estavam suficientemente claras para mim, nada respondi. Esse é realmente um tipo de pergunta que não se responde, pois como a lei brasileira me permite ler a Crítica da Razão Pura, a conversa descambaria para a defesa de meus direitos constitucionais e humanos, o que seria uma complicação desnecessária. E ademais eu já tinha preocupações suficientes.

A terceira persona da trindade negativa supracitada foi mais além. Ouviu-me falar em "identificação projetiva" e quase teve um troço. "O que é identificação projetiva? O que tu leste sobre isso? O ‘pessoal’ fala as coisas sem estudar, deveriam ter mais cuidado com isso (…)" . Calei-me. Eu precisava daquela professora viva até o fim do meu estágio, pois ela tinha bastante a me ensinar e eu já estava com demasiadas dificuldades para aprender. Não precisava de mais essa. A psicanálise ficou sendo um templo sagrado e intocável até o fim daquele estágio, que afinal de contas era de psiquiatria clínica. Deixei o Freud e a Melanie repousando até que chegassem minhas supervisões de psicoterapia, quando eu seria obrigado a falar deles, sob pena de reprovação.

Que impressão me ficou da atitude dos guardiães do Santo Graal acima referidos? Dos dois primeiros: aparentemente, sentiam um indisfarçável ciúme de seus amados referenciais teóricos. Algo que chamo de "Síndrome da Tesourinha do Mickey" (dia desses eu explico o que é isso). Da terceira, uma querida mestra, das melhores que tive: ela tinha uma reverência especialíssima pela exatidão no uso dos conceitos psicanalíticos. Era preciso estudar muito, e dominar em profundidade a matéria antes de pretender sequer pronunciar certas palavras. Excesso de zelo.

Os tempos mudaram, os anos passaram, outras inquietações me surgiram. E dessas inquietações, a curiosidade. "O diabo é mais diabo por ser velho que por ser diabo", dizem.

As marmóreas colunas do palácio kantiano se apresentaram. Veio o azedo Schopenhauer. Intercalei um livrinho da Casseta e Planeta e umas tirinhas clássicas de Calvin & Haroldo, seguidos da Odisséia. Homero talvez tenha sido meu erro, pois na seqüência tive uns sonhos meio nada a ver e saltou-me Freud e sua celebérrima "Interpretação dos Sonhos".

"Bah, que doença, eu estou fazendo isso pra quê?", pensei. Foi quando tirei do fundo da estante um livrinho vermelho, coisa de nada, que eu havia comprado no impulso uns dez meses antes porque era uma "oportunidade", dizia a livraria, a R$ 9,99. O livrinho chamava "O Sono Dogmático de Freud". Na pressa impulsiva da compra, entendi que o autor devia ser um filósofo arrogante que resolvera meter o pau no Sigismundo Scholomo, mas tava valendo. A R$ 9,99, não é todo dia que se encontra um livrinho vermelho.

Buenas, e não é que o autor do livrinho vermelho era mais um filósofo-psiquiatra? Bah, nem tinha notado. E o subtítulo então: "Kant, Schopenhauer, Freud". E a tese do cara é um fenômeno, pois demonstra, sem maiores dificuldades, que o conceito de Inconsciente é uma cópia-gêmea -univitelina da misteriosa Vontade de Schopenhauer. E o Recalcamento, uh, terêrê!, nem conto pra vocês de onde o Freud colheu.

Luiz Eduardo Ulrich

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