Simplicíssimo

Aurora (II)

II

Se conheces teu destino, saibas que teu nome se aliará às mais terríveis lembranças destas terras.

Do mesmo modo que, para aquele que se abandona inteiramente ao impacto de um fato vital, é como se ele visse diante de si todos os possíveis eventos que nunca se tornaram fatos e, que em seu sentido mais secreto, continuam a pairar na imaginação. Não sei se agora imagino ou corporifico minha vontade como fatos vitais, mas a sequência de pensamentos e conclusões que me chegam se equiparam mais a impulsos, muitos dos quais ilógicos e injustos, do que à lembranças de minha origem, tão rápidas e escondidas.

Vivíamos, meu pai, Alermano e eu numa construção instigante, até mesmo para uma região pouco abastada como aquelas colinas sobre as quais, ainda hoje, tantas auroras não brilharam ainda. Nossa casa subdividia-se em cômodos apertados e secos, tecidos direto na pedra que hoje sei denominar-se Opala (certa vez, uma velha cigana diria-me que tal pedra me serviria “para agitação reprimida devido à tentativa de resistir a qualquer forma de estimulação”). Aprendi durante meus primeiros anos a arte de esculpir na pedra as mensagens eternas dos espíritos viajantes, a princípio como um mero observador, mas rapidamente me tornei um ajudande mais eficaz e tão talentoso quanto meu próprio pai (e que a soberba destas palavras sejam filtradas pela verdade que nelas se encerra). Colorações, refrações, alinhamento, proporção, sensibilidade e clareza eram as considerações de meus longos exercícios pré-liminares ao trabalho, e esculpia pedras e mais pedras durante horas, atrás de nossos carvalhos perfumados, meus desenhos de anjos, animais, donzelas, divindades, autos-retratos e misteriosas formas abstratas, mas ainda de grande beleza inebriante em minha imaginação dura e unidimensional de criança. Um pequeno infante sadio, anos tinha dez e asas nos pés!

Talvez (e agora a tranquilidade destas lembranças me chega como uma sobreforça humana) as imagens da paisagem que nos envolvia sejam as mais claras e perfeitas que posso relembrar em toda minha vida. Certamente, em regiões remotas como aquela província de estranho perfume e silêncio, os vales montanheses menos conhecidos, em comunidades fechadas, pode-se conservar de maneira mais clara e lúcida na memória de seus ex-habitantes, visíveis uns sobre os outros, algumas vezes difíceis de entender, mas ainda visíveis e estranhamente livres de qualquer humanidade destruidora futura, como ocorreria às nossas colinas mais tarde.

O vizinho ferreiro, com suas caldeiras fumegantes e ferros adornados pelo vermelho das chamas, a lavadeira velha que nos livrava daquele nosso mais torpe grau de civilização semi-selvagem, os homens que sangravam os porcos para do sangue fazer chouriço e de suas carnes ofereciam grande parte aos santos, um cego pedinte que outrora vivera as glórias de um cavaleiro do imperador, mas que agora, em seu esconderijo próprio de escuridão, sentia-se mais livre e consagrado do que nunca antes pudera-se sentir. Até mesmo os sedentários criaram sua identidade com nossa comunidade, como se fossem plantas cultivadas na beira da montanha, importantes pelo simples fato de co-existir em nosso Estado selvagem e fora-da-lei; mas não tomemos tal termo em sua conotação agressiva, e sim em seu sentido figurado: éramos fora-da-lei porque éramos livres como os pássaros, simplesmente a imagem daqueles que, de alguma forma, querem lançar-se para fora de si. Para estes existe o elemento danificador, no caso, a igreja, e o castigo neste grau de nossos costumes é a queda de todo direito e proteção, e também de toda clemência. O direito à torturas e às festas da vitória cruel e covarde em toda sua impiedade forneceu-me as primeiras formas para chegar à conclusão que, em toda felicidade, há um igualamento de maior potência na direção oposta. E sob as formas daqueles castigos, entra em cena minha história de assassino, acompanhada pela história de meu comparsa e amigo Alermano, ajudante de meu pai.

Alermano Di Pietro nasceu em Ruta, perto de Gênova, em meados do primeiro ano do século XIV e já naquela época movia-se de vilarejo em vilarejo, levado pela lógica (triunfantemente injusta) dos pessimistas amedrontados pelos inquisitores. Com seu pai acusado e morto como bruxo (e não cabe a mim ou a qualquer outro depois de mim dizer se de maneira equivocada, já que vivemos em uma época inoportuna e equivocada), sua mãe, sem poder prover-lhes para a vida, caminhou errante por terras que os levaram a nossa província, em Pádua, na busca de uma bondade última. Quando chegaram ao encontro de meu pai, Alermano já contava três anos de vida, e sua mãe não chegaria a vê-lo com quatro. Tuberculosa, foi levada indefesa pelo anjo cego da expiação, mas com seu coração tranquilo, como sempre ouvi meu pai relatar a Alermano. Crescemos assim, unânimes, em parte pela ignorância, em parte por rejeitarmos por conta própria a definição dos conceitos de “servos do Senhor” e servos da igreja”, na tenaz resistência contra as circunstâncias que sobre nosso povo se abatia. Lembro-me que, desta forma, aquela era uma manhã clara da segunda quinzena do último mês de outono. Após nossos exercícios de lapidação ministrados pelo nosso pai (sim, agora o meu era também o dele, e disto fizemo-nos irmãos para além do bem e do mal), descemos as encostas da montanha, chegando às colinas e vales que se abriam como um único oásis de unânime beleza e grandeza, tamanha a sua descomunal contingência. Os presumíveis atalhos e caminhos daqueles vales eram, na verdade, um quimera diante de nós. O labirinto se estendia para além de nossos olhos, se perdendo dentro da névoa e dentro daquilo que chamávamos ‘Recanto dos Deuses’, como se os campos verdejantes se estendessem até os céus e as gramas e as árvores e tudo que por aqueles terras inóspitas corria se dissolvesse no azul incomunicável, renitente e quase sempre frio que se pintava acima de nossas cabeças. Nossa própria obstinação em adentrar os mistérios daquelas terras ganhou sua cor própria, uma cor de tesouro e de dragão (que matávamos no invisível com nossos martelos de lapidação que trazíamos de casa) por trás de cada árvore de galhos retorcidos que subíamos, margeando cada riacho antes de descobrirmos suas fontes e silenciosamente dentro de nossa própria solidão. Chegando a uma encosta, ouvíamos gritos sufocados entre os galhos, eu na frente e Alermano um pouco atrás.

Encontramos mais do que precisávamos: uma jovem, filha de um dos nossos, cansada e abatida pela surra que levara, gritava enquanto era jogada de um lado para outro, por dois cavaleiros do imperador. Estavam visivelmente ébrios e talvez desta forma justificassem para si tamanho delito contra a pequena. Deveria ter, no máximo dezoito anos, bem mais velha do éramos Alermano e eu, mas muito mais indefesa do que qualquer um de nós. Alermano me sussurrou algumas palavras com sua voz lépida, mas não pude entendê-las. Pelo tom, eram palavras de revolta que nos incitava a agir contra aqueles desprezíveis. Deixamos nossos pequenos martelos de trabalho no chão e descemos um pouco mais para uma visão melhor do que acontecia, mas voltamos rapidamente para nosso local de chegada, uma vez que um dos guardas adentrou a mata para urinar. Como diria meu pai, um homem que se faz digno com a realidade, merece apreço também pelo que deseja, e tanto eu quanto meu amigo desejávamos matá-lo. Pegamos nossos martelos e esperamos que o inimigo se abaixasse. Foi quando Alermano o atingiu com um golpe na cabeça, com a pedra do martelo, na base de seu olho direito. O homem, que não era muito grande, mas muito pesado, caiu com um baque surdo sobre a grama, indefeso, atordoado, mas aquela sua confusão era diferente da que sentíamos, embora possa ser definida pelas mesmas sensações e palavras. Contudo, o homem não estava morto, e já recobrava os sentidos quando seu amigo chamara-lhe o nome. “Bernardo!”, ele gritava, e dizia com seus ares de ébrio claudicante: “venha logo que ainda temos que voltar para o celeiro!”

As circunstâncias tumultuosas daquele exato momento se condensariam em vários sentimentos tão turvos quanto as nuvens que filtravam a luz do céu, através dos anos e das lembranças, mas nunca ganharam em mim a força da culpabilidade. Enterrei meu martelo, tão afiado quanto o que Alermano utilizara para lhe ferir o rosto, direto no olho direito de Bernardo, e o homem gritou como alguém que tem uma ferramenta de lapidação cravada no crânio. Estranhamente, lembrei-me dos porcos sangrados pelos homens de nossa província, com as carnes dilaceradas pelos ferros fumegantes do velho ferreiro, gritanto como aquele homem, sangrando pelos olhos como aquele homem. Mas, num surto de força inacreditável, o homem se edificou num salto sobre as próprias pernas, e caminhou socando o ar com seus gritos de terror, gritos de dor e de uma raiva negra, com as calças nos joelhos e, devido a isso, desabou barranco abaixo, caindo morto aos pés do outro guarda, que percorria, aturdido com os gritos, as margens do riacho, enquanto Alermano e eu imergíamos nas trevas das árvores secas. Vimos a menina no alto de uma outra árvore, soluçando e delirando em silêncio, nos vendo com o canto de seus olhos úmidos e quentes, mas não mais amedrontados que os nossos próprios olhos. Fugira, certamente, quando se viu livre dos braços de seus algozes. O guarda que restara gritava em algum dialeto que, anos mais tarde, reconheci como sendo um tipo de alemão arcaico, e corria de um lado para outro com o fio de sua espada a golpear as árvores, e parecíamos sentir cada golpe em nós mesmos.

Não precisávamos de justificativa para matá-lo, nossa própria realidade nos justificou. A tarde já dava lugar às primeiras trevas da noite quando descemos da árvore, incógnitos, até que o homem, ainda gritando, mas com a voz terrivelmente cansada e dissimulada, se afastou até o início das margens. Alermano se pôs à vista, do outro lado do riacho e quando nosso inimigo percebeu ser uma criança a quem perseguia, soltou a sua arma e serpenteou entre a mata como se sua ira demoníaca lhe provesse da força que esvaíra-se antes de suas veias. Não tínhamos um plano, apenas sabíamos que tínhamos que matá-lo, e assim o fizemos. Segui atrás do homem que corria para Alermano, sem que ele me pudesse ver, oculto entre as margens e a base do barranco, com o martelo em riste. Joguei-o e o cravei na base da nuca do cavaleiro, que caiu com o rosto por terra com um grito agudo e inteligível apenas pela dor que lhe dera origem. Alermano veio pela frente, cambaleante, e o atingiu no topo da cabeça, três vezes seguidas, rápido, e o sangue jorrou-lhe na face com tamanha força que cheguei a sentir seu gosto em minha própria boca. O homem estava morto, foi quando a menina reapareceu com olhos estáticos e inexpressivos. Não chorava mais e percebi que tinha uma espécie de gratidão nos modos, embora ninguém tivesse dito nada até voltarmos apressadamente até a província. Chegamos quando a noite já avançava e continuamos em nosso silêncio roubado daquelas mortes.

Consummatum est.

Rodrigo Monzani

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