Simplicíssimo

Aurora (III)

III

– Eis o nascimento de tua tragédia no espírito, o crepúsculo de teus Deuses e a genealogia de teu demasiado humano.

Ainda que, durante todos os meus dias posteriores àqueles assassínios, tenhamos combatido palmo a palmo com o gigante Acaso, sobre a minha humanidade, desde então, tem reinado o sem-sentido, e o poder da virtude deu lugar à injustiça da insensatez, impecavelmente concebida pela lembrança daqueles cadáveres. Percebo agora, e minhas mãos tremem quando nisso penso, que passei por todos meus anos com um amor diferente pelo mundo que se edificou a minha volta, que embora verdadeiro, estava perdido. Era um amor menos elevado e mais insensato, gerado parte pela bondade, parte pela fraqueza, parte pela resignação e parte pela melancolia, mas prometi a mim mesmo contar, sobre aqueles fatos distantes, toda a verdade, e a verdade é indivisa, brilha por sua própria perspicuidade, e não consente ser reduzida à metade por nossos interesses e por nossa vergonha. Uns a conhecem, outros não e o resto é silêncio.

Embora eu evitasse conversar sobre o assunto, Alermano parecia sentir-se cada vez mais encorajado a trazê-lo à tona. Seus comentários muitas vezes nem mesmo faziam sentido, algo como: “- Por um segundo pensei que ele se levantaria com o martelo enterrado no olho e bateria nas pedras até que elas se movessem”, ou ainda: “- Lembras de como o corpo ganhou velocidade? Caindo do barranco, lembras disso?” tudo alternava-se fora de contexto, passagens específicas dos assassinatos, recortes que ganharam a força de hábitos mentais, frases perversamente apropriadas a seu novo estado de espírito, medonhas, impossíveis e descobertas por ele com grande interesse, por alguma razão, através da força de algum efeito primitivo. A possibilidade de matar não nos era mais terrível, flertamos com ela várias vezes e hoje percebo que o horror impreciso que se soma à excitação de um ato assim é, na verdade, inteiramente diverso da maldade; é indelével apenas da própria excitação que lhe dá origem e quanto mais depressa ela cresce, maiores são as excentricidades dos detalhes, mais estes mesmos detalhes se tornam inextricáveis entre si e maior é a carga emotiva, espantosa, descomunal, essencial e inescapável como a própria morte.

Retomamos nossas atividades de lapidação nos dias seguintes e não mantemos contato com a garota, apenas nos víamos à distância, algumas vezes parávamos, longe uns dos outros, ela, Alermano e eu, e nos olhávamos pausadamente até que o vento soprasse mais forte, até que um pássaro invisível cantasse ou qualquer outro detalhe ou estímulo imaginativo nos lembrasse do mundo. Então voltávamos à realidade sem uma só palavra ou gesto, entorpecidos e mesmo hoje não posso dizer em palavras exatas o que se passava em minha mente naqueles raros momentos, apenas digo que era algo deliberado e agressivo, mas, ainda assim, encantador. Pensávamos que poderíamos decifrar o segredo daquele encanto, e não foram raras as vezes que vi Alermano sozinho no mato alto com sua lança em riste à caça de raposas e cachorros do mato em busca de uma emoção análoga a que sentira naquele fim de tarde no barranco. Depois, com seu ar ausente, ele arrancava a pele de suas caças, cada vez mais numerosas e as pendurava do lado de fora de nossa casa e à noite fazia colares e brincos com seus dentes e garras, sob a luz de seu lume, numa seqüência interminável de manejos com sua faca que parecia mover-se sozinha em suas mãos num colapso nervoso. Fazia também alguns objetos estranhos com gravetos e galhos secos, tecendo junto a eles a pele dos animais, algumas vezes partes de seus corpos misturadas com cascalho, resultando em objetos de fragmentos grotescos e estranhos.

Certa feita chegou a costurar a cabeça de um coelho num corpo de raposa com tamanha destreza que os pontos de linha de pesca nem mesmo eram visíveis sobre os pêlos; e empalhou seu prodígio com um rabo de boi, os dentes bem à mostra, dando àquele animal a forma de sua própria imaginação, em eterna posição de ataque. Foi daquela maneira que o encanto o atingira, passou a movê-lo e foi o que o marcou por toda sua vida e o edificou como um prodígio, digo com pesar. Numa manhã de sombras, quando Alermano se ocupava sozinho com estas suas novas atividades de caça, vi a garota enquanto passava pelas árvores perto do riacho de nossas lavadeiras. Tudo estava quieto, apenas o som da água prateada incitava o marasmo marrom que parecia perder-se em círculos folgados pelos ares. Estava só, com seu vestido branco longo manchado de barro perto de seus pés descalços e eu continuei à distância, incógnito no meio das árvores, e a observei pelo que me pareceu muito tempo com grande interesse.

Ela subia com muita habilidade numa árvore de tronco entreaberto e folhas roxas, ia através dos galhos até o mais alto deles e pulava, sempre após um breve momento de meditação, de olhos fechados e braços abertos, caindo na lama da margem, pouco antes do leito do riacho. Depois retornava e repetia o ritual até que seus pés sangrassem, até que o vestido se rasgasse quase todo e até que não conseguisse mais se levantar, repetidamente. Então lavava o sangue no rio de maneira pavorosamente lenta, calçava as sandálias e adentrava a mata mancando, mas com uma satisfação espantosa nos lábios. Não foram poucas as vezes que a surpreendi naquele mesmo local, mesmo no frio mais cortante ou sob a chuva, sempre a mesma atitude. A princípio associei aquilo a algum tipo de castigo, incapaz de perceber, naquele momento, que cada castigo esconde um tipo de motivação e cada um tira dela diferentes interpretações. Cada um de seus saltos era seu esconderijo, um espaço de tempo no qual ela deixava de existir e se livrava do mundo repleto de ecos e vazios e luzes refletidas; e antes de cada queda ela parecia esperar voar, se elevando perto da superfície de água gelada para sumir céu adentro, sem máscaras, sem rastro, dançando num espiral ascendente com seu vestido sujo de lama no meio do vento, enquanto eu permaneceria imobilizado pelo terror, incógnito na mata.

Os saltos eram seu ponto de fuga, umas irreflexões que, de tão breves, não possuíam sentenças morais e, na forma daquela brevidade, ela se apossava de seu próprio pensamento, condensados como luzes acesas bruscamente no escuro para, enfim, retroceder ao ponto de origem e reiniciar o salto, mas agora de maneira totalmente polimorfa e diversa daquela de antes. A sua salvação somente existia no espaço de tempo entre o salto e a queda, por isso o sangue de seus pés não a incomodava, diferentemente, dava-lhe uma magnitude que servia para remediar os ferimentos e alimentar-lhe a breve alusão de uma nova motivação de um outro salto. De outra forma, eu descubro o meu ponto de fuga somente agora, tantos anos depois, através da escrita; assim como Alermano encontrara o seu na caça e foi numa destas suas expedições através dos campos que cavaleiros do imperador o surpreenderam. Eles estavam a procura de nosso pai. “- Não és um dos filhos do pedreiro?” – um deles lhe perguntou secamente, mas de maneira decorosa. Alermano tentara se esquivar de qualquer resposta que pudesse lhes indicar o local de nossa casa. Os dois possuíam pequenos martelos de lapidação em suas estreitas bolsas de pano, martelos encontrados junto aos cadáveres de dois dos seus, mortos na margem de um riacho não muito distante de onde se encontrava meu amigo e irmão.

“- Procuramos pelo dono destas ferramentas. Dois de nossos homens foram mortos e pelo que sabemos estes são instrumentos de lapidação. Onde moras, menino?” “- Conheço várias pessoas que nem mesmo são de Pádua que possuem estes mesmos instrumentos. São comuns entre os ferreiros e amoladores também.” – respondera Alermano enquanto os homens lhe viravam as costas, não se dando conta que confirmava-lhes o nome de nossa província e onde, afinal, eles poderiam encontrar nossa casa. Transcorridos todos estes anos, me é inútil inferir o motivo que nos levou a simplesmente abandonar nossos martelos cravados naqueles cadáveres à beira do riacho e me espanto ao constatar que, sobre isso, nem mesmo hoje esperaria um entendimento maior de minha parte do que possuía quando jovem.

Ainda agora não saberia o que fazer e certamente teria apenas abandonado-os novamente. Talvez eu esteja apenas mais velho, mas não muito mais maduro e inteligente. Adquiri mais informações, mas meu verdadeiro distanciamento em relação à matéria narrada é pequeno. Por vezes, o velho e o jovem confundem-se, e torno-me um só. Mas ainda assim considero-me como dois, pois há momentos em que me desponta uma espécie de “consciência autoral” daqueles crimes, e minha natureza humana me faz prolepses que não poderia fazer se já não tivesse vivenciado a história toda e me distanciado o bastante dela. Pouco a pouco esta natureza foi tomando todo o meu tempo e, os contornos de minha personalidade, inteligência e tendência à agressividade, foram moldados. O que, então, distingue aqueles incidentes de minha história atual? Minha ambição em descrevê-los sob a capa do anonimato? Os segredos intravenosos que apenas cabe a mim conhecer e decidir sobre sua revelação?

Certamente não. Descrevê-los faz com que os fatos se tornem concretos, reais e não apenas estas lembranças e ilusões perdidas que tanto me desesperam. Não me importo com respostas, não é relevante saber ou insistir sobre o que teria nos livrado da culpa. O que importa é a matéria-prima em si e minha ambição de construir acerca dela uma interpretação, de torná-la um evento no qual eu mesmo possa ser incluído para que, enfim, possa deixar de pairar indiferente sobre a zona dos sentimentos sem significado. E não beira à zombaria fazer de tais tipos de sensações, tão necessárias e regulares, uma pavorosa vertente de miséria e terror, transformando-as em coisa por demais comum e cotidiana a todos aqueles que, assim como eu, sabem que fazer o mal não significa tornar-se mau? E não seria sob à capa que se esconde a resposta a esta pergunta que, pouco a pouco, os demônios se tornam mais interessantes aos homens que os anjos e santos? Dominando a esplanada na qual estava meu irmão havia uma bruma cinzenta como um fantasma, nada parecia real e não pude enxergar algo além dos troncos das árvores mais próximas enquanto me encontrava sozinho.

Foi quando Alermano, ao ver os cavaleiros em disparada, correu direto para o rio onde sabia que me encontraria pescando. De início, não o reconheci em meio à névoa; até mesmo os poucos animais pareciam surgir de outra dimensão, de repente a minha frente para então se tornarem novamente sombras e contornos dissolvidos naquela cortina natural. Dirigi-me através dos gritos dele, encontramo-nos e entre soluços e muito rapidamente, Alermano contou-me sobre o que acabara de acontecer, exausto, e por isso não pude entendê-lo bem. As flores ganhavam uma cor estranha naquela época do ano e se tornavam tão numerosas e densas que serviriam de empecilho àqueles dois do imperador. Conhecíamos um atalho pelo vale que se abria a nossa direita, após o rio e nem mesmo me preocupei em recolher meus materiais de pesca antes de sairmos a toda através da trilha. Lembro-me que apenas pude ver os cascalhos e gravetos e folhas caídas passando debaixo de meus pés e ouvia a respiração ofegante de meu amigo correndo logo atrás. Num dado instante encontramos nossos cavalos, e confesso que tal concatenação de eventos agora me parece absurda pois, embora nossos há apenas dois dias, nos era dificílimo desenvolver algum método de comunicação com aqueles animais. Montamos e por desígnio do destino chegamos antes dos cavaleiros em nossa casa; mas infelizmente não encontramos nosso pai. Enquanto ainda o procurávamos aos gritos, ouvimos os cavalos de nossos algozes. Tratamos de nos esconder nos nichos tecidos na parede onde guardávamos as frutas durante os meses de inverno que, afortunadamente, no outono se encontravam totalmente vazios, já que as frutas ficavam na cozinha nesta época. O medo cegou-me como um choque, e nada pude perceber a não ser as sombras daqueles passos lentos através da casa e o som de nossos poucos móveis revirados e jogados ao chão. Permanecemos ali, ouvindo os comentários dos cavaleiros em meio a uma espécie de embriaguez.

Na escuridão, vi que Alermano se movimentava de maneira estranha, depois percebi que tirava de uma espécie de bolsa que tinha nas costas sua lança de caça. Ele olhou para mim com seus olhos quentes e sua boca formou a palavra ‘corra’. Foi quando, num salto surpreendente, ele se lançou contra um dos cavaleiros, vítima que agora era dos instintos dos assassinos.

Rodrigo Monzani

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