Simplicíssimo

Aurora (XXXI)

XXXI

 

 

 

– Da loucura, não te restaram nem tuas melhores proposições.

 

 

 

 

Encerrado entre a madeira maciça que compunha o corpo do navio, passei a explorar a embarcação cada vez com mais interesse enquanto compreendia as funções racionais de seu tão singular mecanismo de navegação. As cabines eram muitas e de forma irregular, subdivididas em duas, três partes sempre menores que serviam de local para descanso, enquanto as partes maiores eram para oração e meditação, guarnecidas por severas portas encimadas por ferrolhos e parafusos de ferro denticulados; e a cada noite em que me aventurava a investigar aqueles compartimentos enquanto os outros dormiam, relembrando as explicações de Barton, em cada rangido daquelas portas encontrava uma plenitude de mistério, todo um universo de observações solenes e de meditações que, quando não uma difícil e sofrível salvação, prenunciavam imagens de apocalipses flamejantes. Em minha candura juvenil, ou naquilo que me restara dela, uma espécie de perícia que me permitia abrir as portas para escapar dos turvos fantasmas que, soturnos, rondavam-me os desvãos da juventude, aquele navio transmutara-se num palácio infindável de prodigiosas dimensões, resultado de estudos paradoxais e monstruosos, vaidades pródigas de vontades e gostos pelo absurdo. De um compartimento a outro, tinha sempre a impressão de estar descendo, quando na verdade subia a um patamar mais alto de seus corredores lustrosos, e suas laterais, ainda que imóveis, pareciam sempre girar umas sobre as outras, de modo que minhas idéias acerca do conjunto do navio não eram muito diferentes daquelas que passei a considerar um labirinto. Era-me difícil precisar se, a determinada ocasião, ao ar livre ou enclausurado em alguma cabine onde Barton me ministrava suas aulas diárias, encontrava-me no primeiro ou no segundo pavimento. Junto ao pico do mastro, havia uma grande barra de ferro equilibrada por cordas flexíveis de duplos nós, perpendicular ao assoalho do navio; e havia também um terraço perto do castelo da proa, centrado por um grande trono circundado de cadeiras menores onde Cristo sentaria para seu retorno triunfal após ser salvo do martírio, iluminarias que lembravam aquelas que vi em cidadelas pelas quais passei durante o caminho ao mausoléu de Vicenzo Locci, um modesto altar de cedro adornado por imagens e esculturas santas das mais diversas formas, recantos aplainados, outros recobertos por cortinas e panos alvos que escondiam recipientes enormes cheios de água benta e um relógio inerte de prodigiosa dimensão. Eram infinitos os seus desvios, e caminhando no escuro por eles, cheguei a um terreno que a princípio me pareceu areia, mas na verdade era mais grosso. Levantei meu lume acima da cabeça e vi que se tratava de um frondoso jardim cultivado no lado oposto ao castelo da proa. A imagem daqueles ramos e pétalas que me pareciam sorrir sombriamente à meia luz continha em si um desvario de sensação, um universo rico em incidentes, em variadas emoções e excitações provocadas pelo perfume silvestre daquelas plantas de natureza incerta e admirável, apaixonante e viciante. Um jardim das oliveiras, cultivado a bombordo do mastro, a estibordo do trono encarregado de trazer Cristo, vivo, de uma ilha de incerta localização onde ainda não sofrera sua paixão, eis onde me encontrava!

 

 

Não ouso rivalizar com meus incautos leitores acerca de suas acepções sobre verdades e mentiras sobre o mundo, delírios e projeções imaginativas, mas estas minhas assertivas descrevem também a mim um cenário de incredulidades e magias ocultas, encantadas, e contra a minha própria vontade sou obrigado, contrariando minhas crenças e sanidade, retratar a situação que somente aceito como parte de algum lugar, espaço e tempo de meu passado por acreditar que nem mesmo os méritos de uma pródiga imaginação poderiam gerar tamanha extravagância e zombaria. Poucas são as almas que pairam neste mundo, sejam elas a essência dos homens mais serenos ou impulsivos, que nunca tenham sido levadas a sentir, de maneira incerta e vaga, uma certa acuidade pelo improvável. Digo improvável, e não sobrenatural, afinal, acreditar que Jesus ainda viveria num arquipélago e salva-lo de seu martírio não necessariamente significaria abandonar a essência das análises lógicas e suas essências de método; mas sim predispor uma versão nunca antes contada sobre a expiação do filho do Divino, resgatada das poeiras da história, impressionante, questionável e de caráter tão extraordinário que as inteligências e intuições humanas não poderiam aceita-la como fato, mas que também não poderiam negar à contra-provas. Compreendi então que a ação não incluía uma volta ao passado da Terra, mas sim o desenvolvimento de cálculos latitude e longitudinais, fusos horários e uma crença na história de Cristo digna de uma perseguição inquisitorial cujo real intento não era, como se fazia pensar, pregar a palavra do criador e sumir do ventre da Terra com as heresias de bruxos e outros malignos, mas sim manter sob a capa de segredo intravenoso o fato de que Jesus ainda viveria e que, ao nosso tempo real, ainda aguardava sua crucificação. Vicenzo, o matemático, botânico e visionário não descobrira, enfim, a volta ao passado, mas sim a verdade eclesial escondida numa ilha esquecida, ilha esta que somente ele mesmo, Vicenzo, conseguira localizar através de seus estudos marítimos, astrológicos e interpretações da Sagrada Escritura. Talvez o manto da loucura fosse o disfarce perfeito para que as rondas imperiais fizessem pouco caso de seus seguidores e os deixassem livres, talvez assim poderiam angariar suplementos e provisões através de doações de gente temente a seus santos, apegadas ao preceito da esmola, para se dedicarem integralmente ao seu fim… quem poderá dizer com a razão da certeza?

O fato é que os seguidores de Locci eram racionais como o próprio, desenvolviam mapas, instrumentos náuticos, eram loucos a um olhar incauto e pueril, mas seguiam preceitos matemáticos, sabiam como desenvolve-los e assim, segundo me explicitou em diversas tardes o padre Barton, o navio que construíram deveria se locomover em águas paradas, sem o vento dentre túneis subterrâneos a uma velocidade maior que as comuns da época para alcançar a ilha.

 

Barton dizia: “- Estudos precedentes aos de Vicenzo demonstraram que o nível d`água sobe a cada vez que nela mergulhamos algo, de maneira que a parte imersa de um corpo qualquer não somente desloca um volume de água idêntico ao seu próprio, mas também se torna mais leve. Ou seja, qualquer corpo mais denso que um fluido, ao ser mergulhado neste, perderá peso correspondente ao volume de fluido deslocado. Vicenzo, então, tentou encontrar um corpo sólido que, em seu estado natural, fosse menos denso que a água, mas que em contato com ela, se tornasse tão denso a ponto de precipitar-se e mover um volume de água considerável. Após anos descobrira que este corpo era o pó das papoulas, do qual também fabrica-se o ópio. Veja, o pó, antes de entrar em meio líquido, é tão menos denso que a água que perde-se facilmente ao vento, mas quando liga-se a um fluido, absorve, se sua quantidade for, por exemplo, a de um quilo, a cerca de dez litros de fluído! Isso significa que, enquanto estamos imergindo certo peso de pó, uma quantidade dezenas de vezes maior de líquido é propelida para cima, devido ao volume que desloca o precipitado que segue absorvendo o fluido. Resultado: este volume de água alçado à superfície devido à precipitação deslocará aquilo que, ocasionalmente, for capaz de flutuar acima deste mesmo volume de água. Em nosso caso será o barco, o que exigirá uma grande quantidade de pó, que é o que vês diariamente estes que seguem Vicenzo aqui trazerem. Vicenzo descreve experimentalmente a descoberta do pó em sua obra “O Método das Alavancas Hidráulicas”, resguardada em seu mausoléu. É um livro… suntuoso.” – e quando o velho padre me dissera aquilo, lembrei do livro que vi na cripta dos tesouros de Vicenzo que pensei, pelo tamanho, ser a sagrada escritura.

 

 “- a partir daí…” – continuou Barton, “- o estudo da velocidade da embarcação, de sua aceleração e das forças que lhe são proporcionais derivam de princípios físicos e de cálculos diferenciais a respeito do volume de água que pode ser deslocado com uma pequena quantidade de pó, devido a sua grande capacidade de absorção e de precipitação.”

 

“- E o que significa aquela barra de ferro no alto do mastro?” – perguntei, olhando aturdido para o aparato de ferro e cordas perpendicular ao assoalho em que nos encontrávamos.

 

“- É para efeito de orientação. No projeto de Vicenzo, o ferro, quando suspenso acima de seu centro de gravidade, como aquela barra que me apontas no mastro, oscila até entrar em equilíbrio numa posição tal que seus pólos ficam voltados para os pólos da Terra, geográficos e magnéticos, que devem ser muito próximos. Assim, o navio deverá estar sempre alinhado a barra de ferro para alcançar o centésimo octagésimo meridiano terrestre, que é onde, em seu decorrer, Vicenzo calculou a localização da ilha onde Cristo ainda vive.”

 

“- Mas como Vicenzo Locci teve meios para tais constatações?” – olhei para o padre com sinais de desconfiança, embora meu entusiasmo não pudesse ser disfarçado como queria:

 

“- A família Locci descende de comerciantes, caríssimo. São homens de navegação e de posses materiais, o que lhes dá tempo e meios para os estudos que melhor lhes convém. Conta-se que, ao regressar de uma viagem, Guilherme Filardo Locci, pai do jovem Vicenzo, pediu para o filho realizar o inventário dos artigos armazenados em seus depósitos, pois não queria ser enganado pelo seu sócio que detinha desconfianças ladinas. Vicenzo, então, demonstrou suas facilidades e inventividade com os números, e dentre os odores de cestos de pimenta, fardos de cravos das Índia, raízes e noz-moscada, aflorava a mente matemática que idealizou esta embarcação. Diferentemente da maioria dos comerciantes italianos medievais, os Locci enriqueceram não com o comércio de tecidos como fazem aqueles de Florença, mas com especiarias de toda a sorte; o que rompia com o espírito religioso. Foram vítimas de diversas perseguições, assim como aqueles judeus e protestantes que até hoje se destacam nas administrações econômicas. Ainda que tradicionalmente os templos e igrejas fossem grandes centros de negócios, servindo até de bancos para guardar tesouros, a idéia de pecado continuou ligada à atividade comercial.”

 

 

“- E como faziam eles naquele tempo?”

 

 “- A rota obrigatória para o Oriente era o Mediterrâneo, que desde o século VIII estava nas mãos dos árabes mulçumanos. Numa expansão política, religiosa e cultural, na qual conquistou as maiores províncias bizantinas e regiões da Itália, Espanha, Chipre e Malta, O Islam dominou a orla mediterrânea, impedindo a livre passagem de nós europeus. Ficamos isolados e a única instituição que resistiu ao declínio foi a igreja, que, por fim, estimulou a reação ocidental contra o domínio mulçumano, cujos produtos foram embargados em nossos territórios. Com o passar do tempo, o comércio de trigo, peles, sal, pescados e madeiras se desenvolveu e se igualou, não em lucro, mas em volume ao dos portos mediterrâneos. Foi quando antigos ricos se tornaram novos pobres, e os novos ricos eram agora aqueles que outrora eram pobres. Fala-se hoje de uma guerra financiada por alianças de classes que pode durar até mais de cem anos, mas desconfio das forças entre aliados, afinal, o que está em jogo é o direito ao comércio, dinheiro, mercenários e feudos medievais. Contudo, nestes embates se desenvolveram grandes casas bancárias, com dezenas de filiais e agentes espalhados por toda sombra dos planaltos europeus. Por meio destes agentes, os bancos começaram a financiar os negócios que lhe fossem interessantes. Foi quando Vicenzo, já crescido, angariou recursos para seu projeto marítimo e começou a construção deste navio, dizendo aos banqueiros que serviria para a importação de lã, e tecidos; além da exportação de trigo da Apúlia e Sicília, escondendo assim seu real intento de partir a procura de Cristo na dita ilha de seus cálculos.”

 

“- Mas seus banqueiros esperavam este projeto sem nenhum retorno financeiro?”

 

“- Obviamente não. Vicenzo fez outras empreitadas menores, em navios velhos de seus familiares. Com a ajuda de um caleidoscópio aristotélico e um mapa que previa os caminhos que o levariam pelo movimento das marés, através das fazes da Lua, realizou viagens que lhe permitiram encontrar ouro e mão-de-obra nas costas da África, capturou piratas mouros devido a suas invenções bélicas, passou fortuitamente pelas Ilhas Salomão, recebendo honrarias dos nativos de grande valor, que acabaram por torna-lo proeminente entre as castas mais abastadas. Como o comércio com o oriente era vital para a Itália, a igreja não combateu diretamente os árabes, mas sim alguns comerciantes viajantes, como Vicenzo, sob o argumento que os verdadeiros fiéis deveriam servir apenas a Cristo, e não aos negócios. Foi quando sua perseguição eclesial o impediu de viajar. Negando suas convicções e seus próprios estudos, acabou por se safar da fogueira, mas já estava velho e não demoraria em expiar ao mundo dos eternos. Isto é o que sei, o resto é história.” – Barton, percebi, se solidarizava com a trajetória de Vicenzo, e sua permanência ao lado de seus seguidores se explicaria não somente pela paixão de seu discurso, mas também pelas lágrimas que, lembro agora, naquele momento lhe percorriam os contornos dos queixo.

 

 

“- Mas deixemos de discursos sobre comércio e riquezas!” – refez-se o padre, limpando as bases dos olhos com as costas das mãos. “- Falemos um pouco sobre a prática lingüística que deverás adotar como um monge franciscano. Se quiseres convencer a todos e dar a eles pouca, quando nenhuma informação relevante, deves conhecer a arte do discurso, da semiologia e as teorias da informação. Comecemos nossa aula amanhã, então, sobre estes respeitemos. Por hoje, vamos dormir, pois o Concílio do Santo Suplício se aproxima e deverás, antes de tudo, estar descansado e tranqüilo para vestir tua máscara franciscana se quiseres encontrar teu irmão Alermano ainda vivo naquelas masmorras de Avignon.”

Rodrigo Monzani

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