Simplicíssimo

Hoje (9)

2007-01-08

Apanhei um susto que nem vos conto. Aliás, conto. Estava eu a
preparar as minhas aulas de amanhã, quando oiço algo parecido ao
urro de uma fera, bem dentro da minha casa. “Estou feito”, pensei eu
instintivamente, algum animal extraterrestre conseguiu penetrar pelo
esgoto da sanita, e vai me deglutir num abrir e fechar de olhos.
Passado o susto inicial, lembrei-me da falta de água e, com um suspiro
de alívio, pensei: “É apenas o regresso da água e o barulho vem do
autoclismo, única torneira de controle automático que se encontra
aberta”. Fui confirmar e, de facto, assim era. Significa isto que já
poderia retomar as minhas investigações nocturnas. Felizmente, já não
é necessário andar a chafurdar no lixo porque consegui descobrir o JSS.
Quando fui tomar o copo com aquele senhor que me interpelou
na rua, a conversa estendeu-se por diversos assuntos, desde o tempo
ao futebol e, como não podia deixar de ser, aos mafiosos dos políticos
que nos governam. A conclusão a que todos chegaram, do dono da
tasca ao deficiente mental que espreitava à porta, é que andam todos
atrás do mesmo: atrás da “tintura”. Tal e qual, atrás da “tintura”,
diziam eles. Eu, claro, só podia dar mais ânimo à conversa e repetia em
uníssono: andam todos atrás da “tintura”. E o Zé é que se lixa. O Zé é
que se lixa. O Zè, estão a ouvir, o Zé é que se lixa. O dono da tasca
volta-se então para nós e diz: “Coitado do Zé, foi ontem para o
hospital”. Fez-se um silêncio sepulcral, que eu acabei por quebrar ao
perguntar: “Mas quem é o Zé?”- fazendo-me tonto.
O dono da tasca é que respondeu, os outros estavam todos
cabisbaixos:
– É um amigo nosso que vivia ali no n.º 13… Foram dar com ele a
espumar pela boca, teve um ataque qualquer e está agora no hospital
entre a vida e a morte.
– Era de cá? – perguntei.
– Era como se fosse, já cá está há uma dúzia de anos e era (é) um
bom homem. Foi empresário em Lisboa, mas segundo nos contou
deram-lhe cabo do negócio.
– Negócio? Que negócio?
– Ele era arrumador de carros e chegava a facturar 200 euros por
dia. Depois veio a máfia da EMEL e roubou-lhe a patente. Roubaram,
está a ouvir? Roubo puro, grandessíssimos cabrões. Aqui também a
coisa está a ir do mesmo jeito. Veja só, ali ao lado do jardim de Camões
havia estacionamento com fartura. Mas acabaram com ele, fizeram
passeios da largura de um campo de futebol só para ninguém poder
estacionar. É claro, têm que fazer render o estacionamento subterrâneo
da fonte luminosa.
– Como se chamava ele? Zé quê?
– José Simplício da Silva, salvo erro. Mas era conhecido como o
JPP.
– Homessa… Porquê?
– Sabe, quando ele cá chegou, todos queriam saber como é que
ele se chamava. Se alguém lhe perguntava pelo nome, ele respondia
sempre: “José, porra, pá!“ E, num instante, passou de “José, porra, pá“
para JPP.
– Bem, esperemos que ele melhore. Gostava de o conhecer…
– Sim, se Deus quiser.

~~~~~~~~

2007-01-09

Vou ao hospital saber do JSS (ou JPP). Levo no bolso o frasco de
tintura vazio que apanhei no lixo, para o caso de poder falar com ele a
sós. Mas já vi que o JSS não deve andar metido com a máfia porque o
prédio onde ele mora é uma casa abandonada, estive lá ontem e,
embora só a tenha visto por fora, deu para perceber que não é casa de
mafioso, dessas que mais parecem hotéis, com piscinas, campos de
golfe, heliportos, vários pisos, barbecue e outras mordomias, portões
automáticos, video-vigilância, jagunços à porta, carrões e jipes com
fartura, enfim, casas sumptuosas que nem os Onassis, os Rockfeller ou
os Gates sonhariam ter, mas que os tios portugueses fazem questão de
possuir, e mais do que uma, uma na serra, outra na praia, outra na
cidade, e sei lá onde mais.
Mas voltando ao caso da tintura, vi hoje o meu colega, o tal que
me parece já andar metido com a máfia porque nunca mais me falou
do assunto. Apenas me perguntou, para disfarçar:
– Então como vai o pé?
– Melhor – respondi para ele ficar a pensar que eu já arranjei a
tintura.
– E o teu carro? Já anda?
– Que remédio? Sabes, eu moro longe…
– Claro, pá, claro. É preciso fazer pela vida.
Para bom entendedor, meia palavra basta. Percebi logo o que ele
queria dizer sem dizer: “ arranjaram-me um «tachito» para eu desistir
do projecto da tintura de iodo, ou seja, tintura por tintura, antes a
tintura fácil do que ter que andar a fazer por ela”. Todos os que têm
boas ideias são comprados pela máfia, ou têm um tal medo dela que
nem se atrevem a expô-las. É, de certo modo, o meu caso. Mas eu
sempre vou trabalhando na clandestinidade, até já tenho a fórmula da
tintura de iodo, só me resta arranjar a matéria-prima.
Desconfio que o JSS seja licenciado em Farmácia mas que não
tenha tido padrinhos para lhe montarem uma Farmácia. Com a
quantidade de licenciados desempregados que há por aí, não me
admira que ele tenha optado pela profissão liberal de arrumador de
carro, classe profissional que, muito antes da dos juízes, professores,
militares, advogados, médicos e farmacêuticos, já sofria a perseguição
dos governos e das autarquias, que lhe açambarcaram o negócio, e
permitiram a formação de empresas dos tios que facturam uma pipa
de massa a cobrar parqueamento em todo o lado, já só faltando
inventar parqueamento para peões (cala-te boca, não estejas a dar
ideias aos tios).

 

Henrique Sousa

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